TEXTOS DO AUTOR

AQUELE CAVALO QUE O PAULINHO GOSTAVA

Paulinho Branco lança "Fortes imagens". Jeito simples de mineiro, o autor produz textos salpicados de humor refinado, às vezes de verdades cruas, sempre prenhes de um lirismo faceiro que nos faz viajar pelo tempo... e com muito prazer.

Aquele cavalo

Década de cinqüenta, dos sete aos treze anos de idade. Férias escolares, mês de julho. De dezembro também. Tempos que não voltam mais. Um único sonho e um só destino: fazenda de meus avós, município de Sacramento, estado de Minas Gerais.

Nada de lazer. Descanso, nem pensar. Da apartação no curral ao roçado da invernada, do campear no pasto ao trato da garrotada. Sentia-me adulto embora fosse ainda criança, num tempo que julgava eterno, mas que dele só me restam lembranças.

Seis juntas de bois baios, seis juntas de bois mouros (de preto). Dois candeeiros, um só carreiro. Canga, canzil e fueiros. Vara, ferrão e chocalho, e o som nostálgico daqueles dois carros de boi carregados. Regulavam o tempo, eu pensava, pois só após a volta deles à sede da fazenda, de onde bem cedo saíam, é que os dias viravam tardes e as tardes em noites caíam.

São muitas as lembranças que de lá ainda trago. Umas chegam e puxam outras que, desprovidas de qualquer cerimônia, postam-se naturais nestas páginas, levando-me a abrir-lhes espaços por demais merecidos.

Havia o rego d’água cristalina, cujo traçado indeciso fazia-o serpentear por entre jabuticabeiras centenárias, para finalmente estancar num miniaçude de águas rasas e serenas. Dali, através das bicas, abastecia tanque e reservatórios, movimentava usina, moinho e monjolo. Efêmeros progressos, daqueles tempos egressos.

A queijeira, a senzala, o paiol e o mangueiro, gravitavam em recomendáveis distâncias da casa-sede, ela num colonial imponente, com seus dois andares e pra lá de vinte cômodos.

A chuva, o relâmpago, o trovão estrondoso, caprichos da natureza que me deixavam surdo e tremoso”. Nas grimpas das mangueiras, maritacas faladeiras. Nas mãos, estilingue de goma “gudia”, firme, da boa. Forquilha de goiabeira. Olho piscado, fôlego travado, mira certeira. E então, no chão, um pássaro caído estirado, após o som surdo e abafado da pedra roliça no peito calado.

As galinhas-d’angola, o fiel cão de guarda (o Duque), o casal de canários-da-terra, possuidores de casa própria no oco do pau, ali perto da cocheira, logo depois do curral. São lembranças que ora vem e que ora vão, deixando-me com o peito apertado e leve dor no coração.

Uma, entretanto, deixou de ser lembrança, tornando-se herança, de tão obstinada e presente, daquelas que todos os dias cutucam a gente.

Trata-se de um cavalo, cria de lá. Mistura da raça árabe, parte de mãe, e manga larga, pelo lado do pai. Seu nome era Jockey, fruto quem sabe de uma pequena confusão do iletrado peão que o amansara, ou talvez não, já que animal e montaria vez por outra se confundiam nas habilidades do dia-a-dia.

Era um cavalo de lida, manso e capão, mas de muita presença, tal qual um garanhão. Pedrês, alto e de ancas escuras, pescoço curto e curvado. Crina branca, comprida, bem aparada. O focinho era preto. A testa, mascarada. Cara pequena, orelhas antenadas. Ao longe, solto no pasto, distinguia-se na manada. No cabresto e sob arreata, formas e proporções das mais equilibradas. A marcha forte, com pisar alto e fogoso, fazia-o esperto e muito elegante.

Não é pela sua beleza, entretanto, que ele me vem tanto à lembrança, mas pela sua dignidade. Isso mesmo, dignidade. Pasmem, pois aquele cavalo a possuía.

Cônscio de seus afazeres, nunca esmorecia, fosse quem fosse sua montaria. Seu compromisso era com as tarefas para as quais era designado. E as executava com o mais absoluto empenho e competência.

Ágil para apartar, dócil no manejo, veloz no galope, incansável para cavalgar. Por tamanha perfeição e bravura era, sem dúvida nenhuma, no meio de todos e em todos os dias, o mais requisitado e o sempre escolhido para o pastoreio diário.

Muitas vezes extrapolavam na lida campeando de sol a sol e, quando, no fim do dia, extenuados e distantes iniciavam a volta à sede, lá ia ele lépido e célere numa marcha picada, postado corpo e meio à frente dos demais cavaleiros.

Olhos vivos, orelhas em radar, captando o menor sinal, atento ao mais leve ruído, evitando surpresas e conseqüentes refugos que pudessem assustar a quem o conduzia e aos demais conduzidos.

Se diante de tanto cansaço, segundos de desatenção lhe tomassem, bastava uma leve quebra de marcha ou um sopro de ventas mais forte, para que novamente atento ficasse, e mais rápido à sede chegasse, dando por encerrada mais uma missão.

Há dias que me sinto assim... um pouco animal. Isso porque me nego a aceitar, que um ser humano sozinho seja capaz de agregar força suficiente que o faça vencer as vicissitudes do cotidiano. São tantas dificuldades, tantos problemas, angústias e decepções que nos chegam diariamente que, vez por outra, sinto estar preste a me “arrear com as tralhas”.

Quando os fardos se apresentam por demais pesados, recorro a essa força animal para que me torne possível suportá-los, e assim capacitar-me para enfrentar as adversidades do dia-a-dia.

É aí que me lembro daquele cavalo, o Jockey, e então, elegantemente resignado e altivo, me recomponho à espera do próximo dia.

Paulinho Branco  (Paulo Roberto Bernardes Santos)

(do seu livro Fortes imagens, minicontos nostálgicos ou simplesmente... Lembranças, p. 22)

Comentários (3)

Voltar