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METADE DOS ESPÍRITAS

Um desabafo sobre impermeabilidade nas convicções e sobre a nova onda de patriotismo excêntrico.

As eleições de 2022 revelaram um país dividido. Praticamente a metade da população votante optou pela direita, e sem saber bem que optou pela extrema direita. Acho que podemos inferir por alto que metade da plateia em palestras nos centros espíritas também é adepta das ideias bolsonaristas. Ter essa noção quantitativa é delicado para alguns palestrantes. Para mim, não só delicado como preocupante.

A Doutrina Espírita está e sempre esteve em consonância com os ensinos de Jesus. Difícil entender a escolha, por parte de seus adeptos, de um paradigma que atenta contra modelos de conduta declarados por Jesus. 

Bolsonaro revelou-se preconceituoso, violento. Exaltou a necessidade de matar 30 mil, discursou a favor de conhecido torturador, deu maus exemplos quanto à imunização, decidindo por não tomar vacina — com isso, levou muitos incautos e sugestionáveis à morte, por ser formador de opinião. Envolveu-se com milicianos e o submundo. Fez brincadeiras com sua virilidade estranhas a um presidente, desrespeitou as mulheres. Foi indiferente quanto à necessidade da arte e da cultura em nossa vida. Foi negligente e insensível quanto ao meio ambiente e aos povos indígenas. Passou quatro anos a ameaçar o Estado Democrático de Direito. Semeou o medo, trazendo a intranquilidade diária de todos os meios possíveis. Mentiu, e sua trupe contratou robôs para reproduzir mentiras aos milhares. Omitiu-se e silenciou quando não devia. Manifestou-se diuturnamente em nível rastejante. Seu caráter, sua ideologia, sua ética particular ultrapassaram nossas fronteiras. E o Brasil ficou malvisto. Onde deveria haver transparência, instituiu sigilo. Instigou missionários das igrejas a quebrarem abertamente o pacto que tinham com a Verdade e com os ensinos cristãos. E promoveu mecanismos para armar a população, facilitando a compra de material belicoso que começou a chegar facilmente ao crime organizado. Isso gerou violência, insuflou o ódio reinante de forma nunca vista até então. 

O palestrante olha para a plateia durante sua preleção. Sabe que a metade dos espectadores provavelmente teve alterada sua visão do Cristo nos quatro anos sombrios do capitão, até 2018 um homem desprezado por seus pares e pelas Forças Armadas. 

E o palestrante sabe que metade da plateia não assimilará os ensinamentos ali exarados, pois são conflitantes com o "novo Cristianismo" que tomou conta da mente e coração de muitos espíritas. E os "novos cristãos", ao se apresentarem doentes, revelam-se impermeáveis, tomados de dissintonia cognitiva, grande parte inconformada com o resultado das eleições, acampados ou levando contribuição para acampados em frente aos quartéis, aplaudindo ou participando de bloqueios de rodovias, sem o menor respaldo em princípios constitucionais e na legislação vigente no Brasil. Aliás, a incapacidade do capitão de administrar um país do tamanho do Brasil levou-nos ao fundo do poço.

Muitos ali sentados são contra as urnas, a Terra redonda e as músicas de Gil, Caetano e Chico. Vangloriam-se de não ter tomado vacina. Veem falhas na Ciência e esquecem-se do princípio kardequiano de tudo passar pelo crivo da razão.

Distorcem trechos da Boa Nova, em flagrante interpretação fundamentalista, para justificar que povo livre é povo armado. Perdem-se na complexidade do Velho Testamento para legitimar visões distorcidas de mundo. Ignoram que estão coniventes com o aumento do ódio e da violência. E apresentam miopia quanto à sua própria toxicidade.

Ocorre ao palestrante a necessidade premente de que as políticas públicas alcancem o segmento miserável da população. E o orador se permite pensar que metade da plateia não pensa em tirar a população da pobreza, tal como sempre se percebeu no "mito" esdrúxulo encarnado no capitão de segunda linha. Arrisca o palestrante a conjecturar que para essa metade é melhor que a pobreza persista, para que haja clientela para o Centro Espírita atender nos finais de semana. E ele não quer pensar assim, mas a ilação lhe vem fortemente à cabeça. 

E o palestrante não quer que tais pensamentos atrapalhem sua ordenação dos assuntos, o encadeamento... gostaria muito de ultrapassar a barreira da impermeabilidade... mas sabe igualmente que não pode fazer mágica, que tudo se resume no livre-arbítrio e no ritmo próprio.

E só lhe resta refletir que o passar do tempo vai promover as sonhadas mudanças no imo das pessoas. Quem sabe, quem sabe... Se bem que o próprio Jesus pacientemente espera até hoje colher o que semeou há dois mil anos. 

Aristides Coelho Neto, 27 nov. 2022

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