TEXTOS DO AUTOR

ACONTECEU NO ECG — LÍNGUA RICA, USUÁRIO POBRE

Luiz pensou que o homem era acéfalo. Mas ele realmente tinha encéfalo, tanto que lidava bem com jogos de palavras, aqueles que a riqueza da língua portuguesa tão bem proporciona. E a moça, muito viva, que fazia ECG entrou no clima.

Ele queria saber o significado de cada sigla no seu exame e também decifrar os garranchos do médico.  Médico é mestre em garranchos incompreensíveis.

— E ECG, o que é?

O rapazinho do plano de saúde não titubeou:

EletroCéfaloGrama! ECG.

— Céfalo? Êta, eu não tenho "céfalo"!

O rapaz olhou espantado e ao mesmo tempo com muita pena. Um cliente que não tinha cérebro, ali na frente dele, sentado e ainda por cima falando. Era praticamente um milagre. Se bem que a tendência do acéfalo seria falar besteira, uma atrás da outra, sem conexão.

— Eu tenho encéfalo e não céfalo — disse o suposto bucéfalo.

Foi quando a atendente mais sabida veio em socorro ao inexperiente garoto.

— Luiz... é EletroCardioGrama. ECG.

Hummm, agora fazia sentido.  Taquicardia sugere cardiopatia.  Ou o encéfalo pode alterar a seu bel-prazer as batidas do coração?  Deixa pra lá. Se bem que cérebro é abusado. O encéfalo só fica pensando. Já o coração só fica malhando, desde que o cara nasce. Dizem que ele é o centro do sentimento. Mas não é. Quando o dono se emociona, ele apenas malha mais rápido.

Já pelo encéfalo do atendente inexperiente borbulhavam questões pungentes. As pessoas que fazem muitas perguntas deviam ser eliminadas sumariamente, pensava ele seriamente contrariado.

 

Na seqüência de procedimentos, ela, gentil, perguntou:

— O que o senhor está sentindo?

— Fome e saudade.

— Como?

— Não como! Como não como há doze horas, o que sentir? Fome. E saudade de comida.

— Podia ter comido depois de tirar sangue.

— Não podia. O sangue foi colocado em tubinhos. E sangue não se come, se bebe, dizem os vampiros.

— Estou falando da bolachinha e do cappuccino

Ela riu, entendeu o joguinho.

— Por que está fazendo o exame? Concurso?

— Como assim?

— Há muita gente que faz, quando passa em concurso...

— Ah! você se refere a exame admissional. Já foi. Agora é outro foi.

— Como outro foi?

— Fui bem, obrigado.

— Não entendi o "foi". Então seria "fui"?

— Ah! não é  "foi" com minúscula. É "FOI", sigla. Febre de Origem Indeterminada.

— Sei, sei, não é concurso.

— Bem, é mais um discurso.

— O senhor fique agora bem calmo.  Se possível imóvel.

— Pode cantar alguma coisa? Prometo ficar imóvel.

— Acho melhor não cantar, mas contar até três...

— Seu coração bate há quanto tempo?

— Trinta e dois.

— Tá na hora de casar.

— Obrigado, quero não! Só consigo noivo sem coração, acardíaco, e que não pensa.

 

E ele conjeturou. Quem sabe o Luiz, aquele do início, do plano de saúde, não fosse um bom pretendente... Mas ela, técnica em ECG... Não, não, acho que não.  Não porque fosse mais "céfalo" do que cárdio. Luiz era muito novinho.  Só por isso.

 

Aristides, 13.7.2008

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