TEXTOS DO AUTOR

REVISORES ERAM PESSOAS DE GRANDE SABER

Cecílio Elias Netto nos fala do fim dos jornais como "escola literária". E relembra a época em que errar era imperdoável. O hoje menosprezado revisor era um verdadeiro cão de guarda, policiando, sugerindo. E todo mundo queria ser auxiliar de revisor.

10/07/2008 15:13

A morte de uma escola

Com o computador, jornais e revistas praticamente aboliram a figura importantíssima e fundamental dos revisores. Agora, há, nos programas de computação, o "revisor gráfico", que aponta riscos verdes e vermelhos quanto a erros. Logo, que os próprios jornalistas e redatores revisem seus textos a partir dos recursos do computador. Começa-se, pois, a matar os jornais como "escola literária", o mais precioso espaço, universalmente, para forjar estilos e aprimorar a arte de escrever.


Desde o seu surgimento, foi,  a imprensa,  o berço de grandes  mestres da literatura mundial, iniciando-se, alguns deles,  como revisores. E, até recentemente, os maiores jornais brasileiros contratavam professores, literatos  e homens de grande saber para serem seus revisores. Nos textos, errar era como cometer um crime. Ou pecar.


Sentia-se honrado o jovem que conseguisse  ser "auxiliar de revisor" num jornal.  Aconteceu comigo na adolescência. Auxiliar o revisor era a possibilidade de aprender, de aprimorar o pouco que se sabia. Como um cão de guarda, o revisor policiava tudo, corrigia, sugeria mudanças. E, no dia seguinte, era ele o responsável por erros que, tornados públicos, matavam de vergonha o redator, o chefe de redação, o dono do jornal.


Nos jornais, não existia o "errar é humano". Errar era absolutamente imperdoável. Nas coleções de jornais antigos, encontram-se discussões  memoráveis entre jornalista e intelectuais por um simples pronome mal colocado. A pontuação defeituosa, a concordância errada provocavam reações imediatas, furibundas, humilhantes. É um monumento à língua portuguesa — desconhecido das novas gerações — a polêmica entre dois gigantes,  Ruy Barbosa e Ernesto Carneiro Ribeiro,  quanto ao texto do projeto do primeiro Código Civil republicano. Na "Réplica" de Ruy, na "Tréplica" de Carneiro, disseca-se a língua portuguesa. Por um advérbio, erigiram-se edifícios  de lógica, de erudição, de cultura.


E a  maldita crase? E o hífen, também maldito? Dizia-se que "a crase não nasceu para humilhar ninguém." Mas sempre humilhou. Como o hífen que, pelo menos para mim, é trauma insuperável, fantasma permanente.  Pois, ao contrário do que alguns pensam,  escrever é tarefa árdua.  Resulta — além de vocação e talento, de dom  — de estudos permanentes, leituras sem fim, informações, atualizações, pesquisa, aperfeiçoamentos. As redações de jornais faziam parte dessa escola. E os revisores, alguns dos  mestres. E continuarão necessários até mesmo com a próxima reforma ortográfica.
 

Ora, se  escrever exige muita leitura anterior, o que ocorrerá  se se abolir a literatura das escolas? Um dos argumentos usados é de uma singeleza dolorosa: os jovens não gostam de ler, não lêem mais. Mas por que, então,  uma  das mais vicejantes indústrias, em todo o mundo, é a  livreira? Se se publicam trabalhos medíocres, há o outro lado:  livros notáveis, reedições de clássicos e obras anunciadoras de novos talentos chegam de maneira alentadora às livrarias.

Preparemo-nos para a cada vez mais ampla  mediocrização dos textos. Ninguém é revisor de si próprio. E ninguém escreve sem muita leitura. Pelo andar da carruagem, haverá, em breve,  quem proponha, por desnecessários, a abolição dos  cursos de letras, como já se fizera, antes, com o de filosofia. O computador mudou o mundo, muda vidas, mas não cria. Sem o homem, é apenas máquina. Bom dia.  

 Cecílio Elias Netto  (cecilio@aprovincia.com)

http://www.aprovincia.com/padrao.aspx?texto.aspx?idContent=90551&idContentSection=693, acesso em 27 set. 2008

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