TEXTOS DO AUTOR

PEDRA NO SAPATO, UMA COLOCAÇÃO

Ele tinha dores de coluna na falta de atenção para com regrinhas básicas da norma culta. Por castigo carregou uma falha de grafia bem no salto do sapato.

Há quem especifique direitinho onde lhe dói a coluna. Numera as vértebras de fazer inveja a qualquer médico. Ele mesmo não sabia explicar bem onde doía. Mas coincidia com o fato de deparar com erros de ortografia em livros, revistas. Descuidos de revisão, digitações inconseqüentes, acréscimos até naturais de erros de digitação onde antes não havia. Doía-lhe, simplesmente, a região lombar. Dor espalhada.

Via coisas que outros não viam – uma troca de fonte, um “o” por um zero. Sutilezas da troca de hífen por travessão e muitas outras que fogem ao crivo do leigo. Com olho clínico, sempre achava falhas! E o pior, discutia com o cliente. Ficava sem paciência. “Cabecinhas duras, não entendem. Trata-se de melhorar o nível de compreensão do texto”, dizia. Não para o cliente, obviamente.

No fundo, no fundo, ele exagerava. Muita gente achava isso. Para mim, a tal dor na lombar era falta de jogo de cintura. Se bem que com jogo de cintura doía também. Mas era benevolente com o autor de erros enquanto o texto fosse minuta, versão preliminar. Acertadamente, achava que ninguém tinha de nascer sabendo. Aí tinha prazer em corrigir e sugerir, caso lhe pedissem.

Tinha casos e casos pra contar. Dentre eles, o de uma revisão em que a senhora não se contentava somente com o apontar problemas e sugestões – ela queria justificativa para tudo. E ele não dominava a teoria. A certa hora, uma pergunta sutil acabou vindo: “O senhor tem curso de Letras?” Ele, educadamente, falou da formação de grandes escritores que nunca fizeram curso de Letras. Que se pode falar e escrever muito bem, sem dominar a teoria. Que existem bons motoristas que sabem niente de mecânica. Mas ficou aquele olhar meio descrente da parte dela. Sentiu dor na lombar nessa hora.

Casos como esse fizeram com que ele mergulhasse de cabeça num curso bem recomendado de português. Pelo menos para ter o que dizer em situações assim delicadas.

Foi até bem comportado nesse curso, embora mantendo suas inflexíveis posições quanto ao uso da língua vernácula, principalmente por professores pós-graduados, mestres, doutores. Houve uma aula em que contou as vezes em que o mestre usou o verbo “colocar” nas mais variadas conjugações, sem ser com coisas materiais. Foram 85 vezes! Isso acontecia demais com ele – preocupava-se com a forma e acabava perdendo o conteúdo. Já aprendera que entre língua falada e língua escrita havia um abismo. Mas ele argumentava que, embora tenhamos de aceitar o dinamismo da língua, aquilo não era dinamismo. Colocar daquele jeito, por 85 vezes, parecia um dialeto indígena. “Repitam comigo, sintam como é primitivo”, insistia. E vinha o dialeto: ko-lo-kan-du, ko-lo-kei, ke-ro-ko-lo-kar, ke-ro-fa-zê-ko-lo-ka-ção.

Às vezes agir de forma inflexível com as deficiências dos outros traz conseqüências  incômodas. E minha avó dizia mais – castigo vem a cavalo. E não é que veio para ele? Foi quando comprou um par de sapatos da Fascar. Presenciei o dia em que ele, sentado, cruzou a perna e observou mais atentamente a inscrição em alto-relevo no salto de borracha. Fixou o olho, torceu o nariz, empalideceu. E imediatamente levou as mãos na lombar. Vi que algo o incomodara muito. Curioso, abaixei-me e pude ler a inscrição que ele carregava de um lado para o outro no salto do sapato. Em alto-relevo, sim senhor, sobressaltando no salto, na parte interna. Mas que castigo! Só tirar pra dormir: “fórmula antiesaustivo”. Convenhamos, deixam de lado o revisor de textos em tantas situações! Que dirá em sapataria!

Passados três anos, porém, ele um dia descobriu que antiesaustivo era inscrição em italiano. Nada de português. Mas já havia doado o sapato havia muito tempo. Só de raiva.

Aristides Coelho Neto

Além da Revisão: critérios para revisão textual. Brasília: Senac-DF, 2008. p. 169.

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