TEXTOS DO AUTOR

COMO SE NÃO

Este conto de Edelson revela o lado escritor daquele que revisou a primeira edição de "Além da Revisão". "Como se não" foi escolhido entre os melhores do II Concurso Literário Raquel de Queiroz 2008.

Como se não

Sai do elevador e caminha ao seu encontro, a mulher. Andar trôpego, chumbo nas pernas. No abraço inesperado, o corpo a desconjuntar-se sobre o dele. Lábios secos, trêmulos, balbucia: Matei o Beto... Matei o Beto... Matei o Beto... Antes de desfalecer e ser carregada até o sofá.

– Tente se acalmar e me conte o que aconteceu. Um copo d’água e um comprimido. Tome, é um calmante.

Pega, ainda meio zonza.

– Vocês discutiram? Ele bateu em você de novo?!

– É, brigamos... Ele me deu um soco no rosto, e acabei acertando a cabeça dele com um cinzeiro... aquele de bronze e haste longa que você me deu... Quando caiu, ele tremia todo, se estrebuchando. Depois ficou me olhando de um jeito estranho, como se não me visse. Então saí correndo... Ai, meu Deus, o que foi que eu fiz...

Instantes depois, Sônia adormece. No rosto ainda belo, os lanhos do desespero. Enquanto lhe afaga o cabelo, Lino pensa numa saída. Uma fuga seria possível, a fronteira a cerca de duzentos quilômetros e os amigos no país vizinho, nem seria preciso visto, e ela não teria dificuldade em montar consultório odontológico na capital, ele tinha umas economias e não demoraria para resolver os negócios, ficariam juntos... Mas talvez não fosse a melhor solução. Pelo que contou, ela fora agredida antes. O hematoma no olho direito era prova. E não foi a primeira vez, havia testemunhas. Legítima defesa, óbvio. Mas pesava o desgaste de um júri popular, sempre imprevisível, e o fato de ser o morto de família influente, conhecida pelo modo violento de resolver as questões.

Quando soube que Sônia apanhava de Beto, Lino não se conteve. Depois de ligar para o consultório e mentir que estava se mudando, conseguiu um encontro num bairro afastado. Era outra pessoa, a mulher. Olheiras, rosto chupado e em flagrante derrota ao desafio dos cabelos brancos, desalinhados. “Por que está se mudando, Lino?” No olhar, uma névoa. Ele disse que tinha mentido, precisava conversar com ela, soube que Beto a agredia, não iria admitir aquilo, ela deixasse o filho-da-puta, tentariam novamente, iria matar o cretino, sumiria no mundo, a vida é uma merda, ela, o desgraçado, ele...

Sônia ouviu em silêncio, como se não. Depois disse, tal uma reza, que Beto a mataria, jamais a deixaria ir, ele tinha prometido mudar, iria parar de beber, o roxo foi de uma queda, quem sabe se uma gravidez, Lino não fizesse besteira, a chance deles não mais, a vida é assim mesmo, ela e o outro, não ele...

“Eu arrebento esse desgraçado! Mato duas, dez, mil vezes!”

Sônia controlou a respiração, esticou o arco: “Eu jamais o perdoaria, Lino!” E soltou a flecha certeira: “Porque eu amo o Beto”.

Lino vê o desespero no rosto inerte. Enquanto ela dorme. É preciso agir, rápido! Buscar os documentos. O corpo, há um corpo! Melhor escondê-lo, ganhar tempo. Na casa, na própria casa. Na despensa. Isso, na despensa. Enquanto ela dorme. Na sala, o corpo, no tapete da sala. Enquanto ela dorme. Rápido! Enquanto ela dorme...

A porta só encostada, como supôs. Ele olha para um lado e outro, e já dentro. há sangue, um rastro. agora vai devagar. respingado na parede. pelo sofá. no tapete. então foi aqui. “ele caiu no tapete da sala, se estrebuchando...”. cadê o corpo? o cinzeiro de bronze. o lenço, rápido! pega-o pela haste. “eu amo o Beto.” há sangue no cinzeiro. não vê o corpo. “ele me mataria...” no corredor. sangue no chão. “eu matei o Beto.” na cozinha. a primeira vez foi ali mesmo, depois da mudança. anda. o frio do mármore nas coxas, nas nádegas. arrepios. os belos móveis. “eu bati a cabeça na quina da mesa...” agora, Lino. o cinzeiro na mão. não há corpo. “eu jamais o perdoaria...” na despensa. ela de quatro, como uma cadela. sim, na despensa. enquanto ela dorme. cadê o corpo? “... está indo embora, Lino...” ele e ela. o Paraguai, tão perto. “eu matei o Beto.” no banheiro, ele sempre sacana. ai, os dedos malucos, a língua furiosa... nada do corpo. no quarto, quem sabe. o perfume dela. “eu matei o Beto.” os documentos, enquanto ela dorme. Sônia e Beto. na cama. Lino entra. o cinzeiro na mão. anda. sua. Sônia, enquanto ela dorme. Beto, na cama. sua. o cinzeiro. anda. Beto e Sônia, na cama. ele entra nas entranhas dela. sua. ela geme. ela urra. ela, sua. sua. sua. anda. sua. anda. na cama, Beto. lambe. beija. bebe. bate! bate! bate! anda. bate! bate! bate! bate! na cama, o sangue... o corpo.

Lino fecha com cuidado a porta atrás de si, a maçaneta coberta com o lenço. Entra no carro sem se virar, a chave maior que a ignição. “Acho que ninguém me viu. Tenho que correr, preparar a fuga de Sônia”. Pensa, enquanto liga o motor.

Edelson Nagues

Do livro Humanos (São Paulo: Scortecci, 2012).

___________________________________________

EDELSON NAGUES (nome literário de Edelson Rodrigues Nascimento) – Mato-grossense radicado em Brasília, é poeta, escritor, revisor de textos e servidor público. Estudou Direito e Filosofia, com pós-graduação em Língua Portuguesa. Premiações. Entre suas várias premiações literárias, destacam-se: VI e VII Festivais de Poesia Falada de São Fidélis/RJ (2012 e 2013 – 1º e 2º lugar, respectivamente), Concurso Nacional de Poesia “Adilson Reis dos Santos” (Ponta Grossa/PR, 2012 – 1º lugar), X Prêmio Literário Livraria Asabeça (São Paulo/SP, 2011 – 1º lugar na Região Centro-Oeste), XXXIII Concurso de Poesia “Fellipe d’Oliveira” (Santa Maria/RS, 2011 – 3º lugar), I Concurso Literário da AMLAC (Vinhedo/SP, 2011 – 2º lugar, categoria Conto), XII FestCampos de Poesia Falada (Campos dos Goytacazes/RJ, 2011 – 4º lugar), XXI Concurso Nacional de Contos “José Cândido de Carvalho” (Campos dos Goytacazes/RJ, 2011 – 6º lugar), Concurso Novo Milênio de Literatura (Vila Velha/ES, 2010 – 1º lugar, categoria Conto), IV Concurso Nacional de Contos do SESC-Amazonas (Manaus/AM, 2010 – 5º lugar), VI Desafio dos Escritores (Brasília/DF, 2010 – 2º lugar na categoria Poesia e prêmio de melhor poema), Prêmio Literário “Teixeira de Sousa” (Cabo Frio/RJ, 2010 – 5º lugar, categoria Conto) e II Concurso Literário “Rachel de Queiroz” (Brasília/DF, 2008 – 3º lugar, categoria Conto), entre outros. Publicações. É colunista da Revista Samizdat e tem textos publicados em antologias, sites e blogs literários diversos. Em 2012 publicou os livros Humanos (de contos) e Águas de clausura (de poesia – vencedor do X Prêmio Literário Livraria Asabeça), ambos pela Scortecci Editora. Em 2013 teve poemas musicados por Anand Rao, no CD Anand Rao musica poemas de Edelson Nagues. Contato: edelsonagues@gmail.com.

Comentários (3)

Voltar