TEXTOS DO AUTOR

BENDITA MÁSCARA

Em casos de vergonha e constrangimento, melhor com máscara.

Era uma vez um adolescente de pouco mais de 16 anos que tomou seu primeiro porre e sujou o tapete de sua casa na Coronel Spínola quando chegou de madrugada. Quando digo sujar é sujar mesmo, com ardor. Ambiente tomado de odor desagradável, de um jeito que nem posso descrever, esse adolescente era eu, descobrindo coisas — vícios e virtudes. Difícil esquecer, principalmente da cena de meu pai me ajudando, bufando nuvens grossas de fumaça, mas se contendo. Vergonha explícita.

Em outra oportunidade de lembrança embaraçosa, nossa banda — chamava-se conjunto musical à época — estava num show em Jales, interior de São Paulo. Eu, crooner e baterista, tinha a maior dificuldade em tocar samba. Jovem demais, autodidata, me puseram de supetão para acompanhar o sambista Noite Ilustrada (1928-2003) que lá estava. O artista, muito irritado, me pediu para parar.  Foi um fiasco inesquecível... 

Coisas assim vira e mexe voltam na nossa mente. E nos sentimos envergonhados. Normal, afirma Fernando Bumbeers em artigo seu. A lembrança de algo bizarro que aflora de vez em quando tem nome — memória involuntária. Diz ele que, segundo a psicóloga Jennifer Wild, do Centro de Oxford para Transtornos de Ansiedade e Trauma, isso é muito natural.  "Depois de um trauma ou um evento embaraçoso, a maioria das pessoas tem essas lembranças." Surgem quando menos se espera. E a memória seletiva age nessa hora. Segundo o professor Chris Brewin, do Instituto de Neurociência Cognitiva da UCL, "nossos cérebros retêm as informações sobre eventos traumáticos e todos os sentimentos associados a isso". É uma espécie de sistema de punição e recompensa. Pavlov tratou disso. "Seu cérebro lembra de experiências importantes — de perigo ou humilhação — para impedi-lo de fazer a mesma coisa novamente", diz Brewin.

Só pra finalizar essa pequena introdução... nosso cérebro é danadinho. Em situações traumáticas ou socialmente embaraçosas ele "traz de volta sensações desagradáveis de medo e/ou vergonha quando se encontra em uma situação semelhante à do evento original". A descarga natural de adrenalina nessa hora "aumenta a nossa consciência", diz Wild. Essas memórias involuntárias, pelo que entendi, vão impactar cada pessoa de um jeito, como sempre. Vamos ao que aconteceu antes de ontem.

Eu e Elise precisávamos ir ao Santander. Três meses sem movimento, hora de atualizações. Estivemos nesse banco por duas vezes só, coisas da era digital. Era um dia em que a desatenção parece que graçava, que estava escrito que era dia de vexame.

Chegamos ao banco, tentamos entrar por um local que não era porta. O guarda nos indicou. "Por ali." Êta! Corrigimos o rumo. Ao entrarmos, a porta giratória apresenta a peculiaridade de você colocar seus metais e eletrônicos à vista numa cumbuca de acrílico logo na sua frente e que nos acompanha no giro. Depois de entrar, consegui pegar meu telefone, mas Elise, não! O vigilante disse: "Aguarde que ele volta". E não é que voltou?  Ufa! Ao entrarmos, perguntei pelo Guilherme, gerente. O vigilante afirmou não haver Guilherme no banco. Argh! Estranhei! Quando perguntei se ali não era o Santander, ele disse — "Aqui é o Itaú." As pessoas em volta ouviram tudo.  O silêncio foi expressivo, mas profundo e rápido. Alguns comentários desarticulados e rápidos também. Meia-volta, volver, rápida, com o rabo entre as pernas, sem olhar para trás. 

Mas estávamos de máscara. E essa lembrança desagradável tinha total chance de ir pro espaço, como se a tragédia não tivesse existido... Xô, ridículo! Éramos incógnitos. Vivaaa! Bendita máscara!

Aristides Coelho Neto, 14 nov. 2021

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