TEXTOS DO AUTOR

CONTATOS IMEDIATOS DE QUINTO GRAU

No interagir, tudo vale a pena para você sair de casa, sair do ostracismo digital. Mas, claro, filtre tudo.

Quanto mais idade tem a pessoa, menos faço questão de explicitar as crescentes facilidades tecnológicas. Exemplo maior — pagamento de contas. Pagar pelo celular? pelo tablet? computador de mesa? Quanto mais idade e maior a solidão, melhor que a pessoa vá lá ao banco pessoalmente. E jogue conversa fora com as pessoas da fila. Que interaja. Fale dos seus problemas, da dor no joelho. Ouça os dos outros. Que tome um café. Observe com atenção aquela ponta de epiderme entre os buracos da calça jeans da moça com o cachorrinho. Que fale de Brumadinho. Dos ministros do STF. Do tal do sexo selvagem que o namorado de Gleisi Hoffmann mencionou. Das milícias. Do caso de Marielle Franco que agora parece desatar depois de um ano. Da reforma da Previdência. E não é só no banco. É no supermercado, na lotérica, no hospital, no brechó, na igreja, na biblioteca, na praça, no dominó, no malabarismo dos semáforos.

Há momentos em que as pessoas têm é que se afastar do desterro do virtual, do isolamento...

Dia desses fui buscar minha neta na escola. Sentada na escadaria, no maior calor, uma garotinha toda agasalhada.  Foi quando uma senhora comentou: "Menina, como você aguenta? nesse forno?".  Outra mulher contou uma história em contrapartida — a neta dela, no maior calor, sempre pedia cobertor para as pernas. "Elas, as meninas de hoje, sentem muito frio." Uai, sô!

Um certo pai de uma criança ouviu e vaticinou que muito desequilíbrio hormonal e nutricional vem da falta de óleo de coco. Êta! Bastou isso para uma senhora loura falar dos seus problemas intestinais. Ela pairava ali pelo terceiro degrau, esquecendo-se se subia ou descia.  Você pode até perguntar se falava de problemas intestinais do terceiro grau. Não! Eram apenas problemas relatados no terceiro degrau.

Minha neta apareceu no ápice da escada e logo quis me contar a piada que havia ouvido (ela adora). Um sujeito sendo perseguido por um carro de polícia. Foge e foge, sem parar. Até que para. O policial o aborda e chama a atenção por não ter parado. E o homem argumenta: "Desculpe, seu guarda. Minha mulher fugiu com um policial faz dois dias. Eu pensei que era ele querendo devolver..."

Escada rica em convivência.

No patamar seguinte, já descendo pelos movimentados degraus em horário de pico, o sujeito de bigode, segurando dois meninos pela mão, falava de Suzano, e da necessidade de porte de armas para professores e funcionários. Crianças, dizia, só a partir dos sete anos. A interlocutora tinha os olhos arregalados. Já li que pode ser botox ou algum distúrbio psiquiátrico. Mas ali parecia assombro mesmo, diante de uma bobagem homérica.

A senhorinha de sombrinha fechada comentava: "A gente sai de uma ideologia e sempre cai noutra". Sua fiel companheira, de braço dado, finalizava com frase curta: "Hoje em dia, a gente carece da falta de líderes confiáveis e éticos".  A moça de calça verde que conversava com o personal trainer perguntava ao deixar a escadaria: "Tem certeza de que dez ovos não faz mal?"

Ao pegar a mochila superpesada da minha garotinha, ouvi de relance do senhor calvo que seu neto havia passado no concurso. E que ele tinha certeza absoluta de que era obra da Virgem Maria. O interlocutor apenas disse: "Seu Pacheco, a Terra tem mais de 7 bilhões de habitantes. Isso, sendo verdade, é um tipo de nepotismo".

Não pensem que, ao se afastar do virtual, você vai encontrar sincronia de opiniões, consenso, bom senso e razoabilidade. Nem pensar. Faz parte do show. O importante é interagir. Pessoalmente é sempre mais real. E nos leva a aprender a não dizer tudo o que pensamos. Leva à necessidade de calar, de ouvir, de doirar a pílula, às vezes até mentir um pouquinho,  para continuar vivendo em comunidade. No fundo, a cena da escadaria da escola é saúde, se usarmos filtros e fizermos a leitura  correta.

Aristides Coelho Neto, 16 de março de 2019

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