A VINGANÇA DO JUDEU

"A vingança do judeu" é romance espírita dos mais conhecidos — um clássico.

A vingança do judeu é um clássico espírita do Conde J. W. Rochester, psicografado pela médium Wera Krijanowski em 1890. A trama se dá na segunda metade do séc. XIX, mais exatamente com início em 1862, na cidade de Pesth, Hungria. Budapeste, a capital húngara, situa-se a 240 km de Viena, capital do antigo Império Austro-Húngaro, desfeito após a I Grande Guerra (1914-1918). Segundo o tradutor da obra — Almerindo Martins de Castro —, em nota de rodapé à p. 11 (16ª ed., FEB), "desse desmembramento [...] resultou a formação da Checoslováquia [no Brasil também se usa Tchecoslováquia], da Iugoslávia e a reconstituição da Polônia em país autônomo".

A história evidencia o preconceito de classe e, no caso desse romance, notadamente o de raça — o repúdio a judeus era muito comum naqueles tempos.

Os personagens principais são Samuel Mayer e Valéria. Ele se apaixona por ela depois de um encontro fortuito, à primeira vista — Samuel, judeu e rico; Valéria, cristã, com família à beira da ruína. As dívidas da família, coincidentemente, eram com o banqueiro Samuel. O preconceito, porém, fala mais alto. A despeito de ela passar a amá-lo, a família proíbe a união, foge a um compromisso assumido e opta por casamento mais conveniente.

O banqueiro Mayer, em razão do desprezo da sociedade, havia decidido tornar-se cristão. Mas as decepções o fazem oscilar entre o cristianismo e o materialismo. A perda da amada o leva a um casamento de aparência. E tem início um processo complicado de vingança da parte de Samuel. O drama se desenvolve com riqueza de detalhes, nas expectativas geradas, nos cenários pitorescos europeus do séc. XIX. A emoção prevalece em todos os momentos.

O antissemitismo parece ser a tônica principal desse romance, mas são ventilados temas satélites pungentes, como o suicídio e a Lei de Causa e Efeito, sempre presentes no nosso cotidiano. Uma nova doutrina surgida nessa época — o Espiritismo — caminha pari passu com essa surpreendente narrativa de Rochester. E fica patente que toda ação vingativa resulta em sofrimento para seu agente. A doutrina nascente na França, ao disseminar-se paulatinamente pela Europa, inserida nesse enredo de preconceitos e de amores descontrolados, leva a uma nova maneira de os protagonistas entenderem as diferenças e os caminhos cruzados. E passarem a vivenciar as benesses do perdão mútuo. Nesse emaranhado tão intrigante como saboroso de Rochester, as circunstâncias levam o leitor a crer que Valéria e Mayer nunca mais estarão juntos, por se enredarem os personagens em situações extremamente complicadas, aparentemente insolúveis. É imprevisível o resultado final. Trará alívio ao leitor? que aspira presenciar o reencontro dos personagens, desta vez já despidos dos preconceitos do passado? unidos por um amor maduro e pleno? Ou o remate será decepcionante para o leitor? que tanto se afeiçoou aos personagens?

Essa a sinopse. Vale mencionar que, em 1966, a TV Tupi apresentou a telenovela Somos todos irmãos, uma adaptação de A vingança do judeu, por Benedito Rui Barbosa. Sérgio Cardoso era Samuel. Rosamaria Murtinho era Valéria.

Vamos agora a observações outras sobre a obra.

Há pessoas que se incomodam com a profusão de termos e expressões em desuso ou rebuscados (lembrar que me refiro à 16ª edição FEB). Entretanto, considero isso uma rara oportunidade de aprender, de ampliar o nosso léxico. E de constatar a riqueza da língua portuguesa. Não me importa se termos não comuns couberam ao tradutor ou ao autor. Pincei apenas alguns. Ei-los: bastos cabelos louros; erguia-se o catafalco; céu toldado por grossas nuvens; factícia melhora; garrulices de criança; pequeno cabriolé; caleça de aluguel; voz salmodiante; inspeção inopitada; criado-grave; engodado pela perspectiva de pronta fortuna; olhos agrandados; mansarda contígua; o coração se confrangeu; embarcação aprestada; pôs um ducado na mão do fâmulo; suportarás as digressões embarcadas; impossível soçobrarmos; contratura enérgica; um franzido duro e acerbo; como que desembriagado; não podia ser culpado a seu talante... e muitos outros.

O uso da segunda pessoa tal qual se fazia em tempos idos — singular e plural — também não me incomoda nem um pouco (Portugal usa ainda). Isso parece me inserir melhor na trama e no cenário de época construído por Rochester.

No que se refere a desdobramentos da leitura, ensejando reflexões, vale mencionar a questão do suicídio, banalizado na trama. Fica patente que o conhecimento da sobrevivência da alma, da Lei de Causa e Efeito, da reencarnação, ajuda quem quer se prestar a esse ato desvairado, sobre o qual a Doutrina Espírita tem tantos detalhes no que toca a suas consequências. É o que se depreende ao nos determos em tantos momentos de dor e sofrimento de alguns personagens que frequentemente pensam em autocídio.

Os jogos de poder e os juízos de valor implacáveis nos levam a relembrar e refletir sobre a passagem de Jesus com a mulher adúltera em vias de ser lapidada — "Atire a primeira pedra aquele que nunca pecou." Chamam a atenção também na narrativa os efeitos remotos e os imediatos da Lei de Ação e Reação, deixando óbvio que os laços do passado influem no presente. Fica claro que a postura diante do altar do arrependimento não é a solução para os nossos desvarios — mas é o começo profícuo da redenção e do ajuste. É patente que credor e devedor têm necessidade imperiosa de caminhar juntos em algum momento da existência atual ou futura. Daí a razão do entrelaçamento dos destinos.

Em meio a paixões desenfreadas, em meio a seres que vendem a honra por dinheiro, diante de acessos de vaidade e de orgulho de raça, a fala do padre Martinho é providencial à p. 315: "Não são o nome e a hierarquia que tornam o homem feliz e meritório ante o Criador". E ainda à p. 340: "Lembra-te de que o perdão e a caridade enobrecem aquele que os exerce, e que a fé se torna letra morta e estéril, se não for vivificada pela ação".

Aliás, a despeito de tratar-se de livro psicografado, é louvável que as verdades eternas cristãs sejam muitas vezes trazidas por um padre católico (Martinho), em suas palavras sábias e ponderadas. Embora, na obra, a crença na imortalidade da alma transite entre os princípios espíritas e os católicos (da confissão, da comunhão e do batismo), o autor passa com proficiência a mensagem que quer transmitir. E vemos os valores universais do Espiritismo estampados na conduta lúcida de um sacerdote verdadeiramente cristão, atuante como Mensageiro do Bem. Eis o padre em ação, novamente:

Que esse fato, meu filho, vos prove, uma vez mais, quanto a vontade humana é impotente e cega; curvai-vos diante das sendas misteriosas da Providência, que permite, às vezes, o crime, para fazê-lo servir à prova e à melhoria dos seus filhos. Vede de que modo a mão do Senhor empregou as vossas próprias paixões para vos conduzir a Ele, regenerado! Pelo arrependimento, fostes trazido à religião cristã, e a vossa alma salva da voragem do ateísmo. (p. 314)

E eis a mensagem do pai falecido de Samuel, por via mediúnica, falando com o filho:

Tudo quanto te parece estranho é apenas a justa consequência dos atos de tuas existências anteriores. Em cada uma das nossas vidas, ajustamos alguma dívida antiga, e os homens que nos inspiram ódio ou amor não são viandantes que o acaso nos faz encontrar, e sim amigos ou adversários aos quais nos ligam mil laços do passado. Só a harmonia, meu filho, dá a calma e a felicidade; da harmonia nasce a perfeição, e desta, a compreensão de Deus. Chegados a este grau de conhecimento, tudo em nós é claridade, todas as forças do bem, que estão em nós, trabalham, sem obstáculos, sob a inspiração do Criador. Para atingirmos, porém, esse alvo sublime, é preciso lutar muito, aprender a governar-se a si mesmo, compreender o coração do próximo e perdoar seus erros. (p. 420)

Enfim, o romance possibilita reflexões importantíssimas sobre a Justiça e a Misericórdia divinas. Por essas e outras, recomendo esse clássico — em tempos de leituras rápidas e fúteis de whatsapp e facebook, que nos desviam a atenção das leituras enobrecidas em imortais e saborosos livros de papel.

Aristides Coelho Neto, 25 set. 2018

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