CARTA A DR. MAGNO VERAS

Considerações sobre o que chamo de equívocos de Lucas Veras — filho de Dr. Magno — ao lançar "Deus, o grande mito". E os pontos a favor dele em momentos cruciais futuros.

Prezado Dr. Magno Veras

Lembrei do senhor, lá no lançamento do livro "Deus, o grande mito", autoria de seu filho Lucas, meu grande amigo de mais de 40 anos. Incluindo o senhor, acho que, dentre os nomes da dedicatória do entusiasmado autor, somos quatro espíritas. E me dirijo ao senhor por essa razão — temos a Doutrina Espírita como um bem comum. E porque o senhor sempre teve uma ascendência grande sobre o autor, medida pelo carinho que ele sempre demonstrou pelo pai herói.

Fiquei incomodado por duas vezes quanto a esse livro. Primeiramente, espírita que sou, não sabia se ia ao lançamento no restaurante Carpe Diem, em Brasília. Uma vez lá, fui acometido bobamente de outro desconforto — eu me preocupava em ser identificado por algum conhecido no recinto que abrigava o nascimento de um livro materialista. E que eu, o adquirindo,  não emprestaria para as pessoas. E nem permitiria a meus netos entregar-se à leitura até que sejam donos do próprio nariz.

Bobagem. Até me diverti com o livro. Sempre digo ao Lucas que ele padece de incontinência verbal. Nessas décadas de convivência, os amigos, aprendemos a nos habituar com essa característica. E por isso nem prestamos atenção quando na quarta capa ele chama os religiosos de medievais. E a gente nem liga quando ele se arvora a dizer que os seus conceitos ajudarão as pessoas a buscar a fé raciocinada.

Passo a breves comentários sobre cada capítulo, fixando-me apenas nas partes que me chamaram a atenção. Falo aqui com alguém que está na pátria espiritual, porque sei que está atento à caminhada de seu filho Lucas. E porque sei que o senhor, Dr. Magno, sempre primou pelo discernimento e sensibilidade, poeta que é, característica dos homens cultos e ponderados.

Espero que seja paciente com a longa carta.

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No prefácio, nosso autor se mostra inconformado quanto ao fato de pessoas cultas e inteligentes, ao acreditar em uma Força Superior, "ignorarem princípios básicos da racionalidade". A gente poderia usar o mesmo raciocínio. Por que pessoas cultas e inteligentes, médicos como ele, ignoram que por trás, por exemplo, de uma máquina maravilhosa como é o corpo humano, existe um planejamento além do seu conhecimento? e de sua vã filosofia?

Quando Lucas, inconformado, põe em cheque a razão de Deus ter criado a doença, me veio à mente a época de seu desencarne, Dr. Magno. Ele não aceitou a sua doença especificamente. Não aceitou a perda do pai. E radicalizou, abandonando todos os conceitos sobre imortalidade e existência de um Deus. Obviamente ele passou pela Doutrina Espírita fazendo leitura em diagonal. Não se aprofundou. Não compreendeu que Kardec, o codificador, não era místico. Era cético, como devem ser os homens de ciência. Educador, profundo conhecedor de ciência e filosofia, o Mestre de Lyon adotou o princípio básico de que não há efeito sem causa. Nessa linha, alicerçou-se mais ainda em Kardec a crença numa Mente Superior que molda e programa com inimaginável sabedoria. Para nós, estudar os fenômenos fortaleceu a crença em Kardec e na sabedoria divina. Para Lucas, estudar dissolveu-a.

Se ainda não compreendemos bem a natureza de Deus, imagine o nosso autor, que lamentavelmente, ao criticar exageros de algumas religiões, acabou por misturá-las todas num mesmo liquidificador. Lamentavelmente, falou em dízimo e não separou as religiões que abusam dessa artimanha. Infelizmente, disse que ao adepto basta "aceitar Jesus", esquecendo-se da "essência de cada religião". Não! O autor não sabe que o verdadeiro ato de aceitar Jesus se traduz em todas aquelas virtudes enumeradas pelo próprio Lucas Veras na p. 10 — "[...] fazer o bem, não sonegar impostos, respeitar as pessoas, não ser racista, não agredir a natureza, tratar o outro com urbanidade, não segregar os pobres [...]". Tristemente, ao falar sobre o Velho Testamento, nosso autor não compreendeu que foi escrito pelos homens, refletindo a cultura e os costumes de uma época.

Quando nosso autor fala de moral e ética, mistura diretrizes e concepções das religiões cristãs com atitudes contraditórias e egoístas dos adeptos. Estas últimas, então, no conceito de Lucas, atingem em cheio as normas de conduta preconizadas pelas religiões cristãs. E o autor não percebe que a peça é bem escrita, é boa — os atores é que são ruins...

Ao mencionar o enriquecimento das igrejas, uma constatação indiscutível, o autor, novamente coloca os templos das diversas religiões em um mesmo saco.  O autor afirma na p. 11 que "se, segundo o cristianismo, o pecado é feito pela ausência de Deus, todo ateu deveria ser mau, o que não se comprova na prática".  Esse aforismo criado pelo autor, e atribuído ao cristianismo, termina bem — não se pode jamais afirmar que um ateu ou materialista não seja pessoa de bom caráter. Mas a definição de erro ou pecado é falha. Porque todo erro se dá pela ignorância.

Concordo em parte que "já se matou mais em nome de Deus do que por qualquer outro motivo". No entanto os agentes da matança eram os imperfeitos homens. Homens que não entenderam a essência do pensamento cristão. Pena que o autor não mais acredite na multiplicidade das existências, para saber que muitos de nós estávamos lá, quem sabe, nesse triste palco das cruzadas, da inquisição, das indulgências, praticando tudo que condenamos hoje. 

Lucas termina seu prefácio, imaginando-se em serviço de utilidade de pública, preparando o leitor para o que virá nas "páginas que se seguem", e que vai nos instigar a "pensar como jamais pensamos"... Pretensão?  Não! Ingenuidade apenas.

Passemos ao capítulo Ser ou estar: eis a questão.

Nesta parte, nosso querido e equivocado autor fala da busca da felicidade, do sofrimento, da felicidade eterna em um paraíso fictício. Afirma que, no ato de encontrar a felicidade por meio de uma receita, ninguém foi bem-sucedido. Engana-se redondamente.  Mas se aproxima um pouco da verdade quando diz que ninguém é feliz, mas está feliz. Compreendemos perfeitamente isso, já que vivemos sempre momentos felizes, jamais a felicidade total. Só que o autor relaciona ser e estar a um sonho perseguido e nunca alcançado — o de ser feliz para sempre. E fala de novo num paraíso que nunca existirá. E fala de novo no real, em contraponto ao fictício de alguma divindade.

Ao afirmar que as religiões criam um lugar fictício para aqueles que rezam de acordo com a sua cartilha, nosso autor deveria buscar inspiração na Lei de Causa e Efeito, já que a estudou em outros tempos, aquela mesma da Física — a toda ação corresponde uma reação. Diz ele que "o homem primeiro cultiva seu sofrimento na vida real para depois abrir uma esperança ao eterno 'ser feliz' em outra vida absolutamente fictícia". Ora, ninguém está aqui para cultivar sofrimento, mas sim para superar qualquer sofrimento. Se a dor é inevitável, o sofrimento é opcional, disse Drummond. Há pessoas que passam pelo sofrimento com altivez. E conseguem ser felizes.

A estância de felicidade (e trabalho), para nós espíritas, é conquistada com muito sacrifício. E leva muito tempo, vidas sucessivas. Não basta crer, não basta aceitar Jesus, não basta entender o erro, arrepender-se — há que se reparar, há muito por fazer até pagar o último ceitil... Se muita gente sofre neste mundo, é porque esse grau nosso de evolução é primário.

Nós, espíritas, compreendemos bem a lógica da reencarnação, não é mesmo, Dr. Magno? Dia desses, folheando o livro Seara do Bem (psicografia de Divaldo P. Franco), deparei  com um trecho que parece de encomenda para o Lucas. Toca no assunto da descrença.  Ei-lo.

[...] A existência de Deus e a instintiva crença na imortalidade da alma são recordações do passado espiritual, e até mesmo a dura descrença de que algumas pessoas se fazem vítimas, decorre de decepções ocorridas no intervalo entre uma e outra reencarnação, quando o orgulho se sentiu espezinhado por não ter defrontado Deus, nem o céu que se esperava, em face das afirmações dogmáticas de algumas religiões que prometiam uma felicidade imediata aos espíritos, por meio de indulgências ou sacramentos formais, que não compensavam o desequilíbrio das Leis afetadas pela agressão sofrida, por aqueles que ora aguardavam uma glória a que não faziam jus. O choque emocional experimentado gerou neles uma surda revolta e negação a que se firmam, bloqueando os centros do discernimento e da razão a quaisquer novas manifestações da fé religiosa, apesar de apoiadas em fatos e experimentações científicas de que o fenômeno mediúnico se faz instrumento. [...] — Vianna de Carvalho, espírito (Cap. 5, op. cit.: A lógica da reencarnação – Madri, 17.10.1983)

Nosso alento é saber que a descrença de Lucas é passageira. Ele está descrente. Não conseguirá ser descrente para sempre.

Passemos ao capítulo A injustiça do nascimento.

Vemos aqui um médico ignorando a teoria de Darwin da evolução das espécies. O querido autor ignorando as transformações inerentes à caminhada do mineral ao vegetal, dos seres vivos mais primitivos até os primatas. O elo perdido. O surgimento do homem, após a conquista da racionalidade, na esteira dos milênios.  Nem adianta, Dr. Magno, criticar essa "genialidade" de seu filho Lucas quando imagina uma inconsistente fabriqueta divina de almas...

Nem sonha o nosso autor — já que apenas tangenciou o estudo da Doutrina Espírita — que a carga genética tem raízes no perispírito. E que a programação de toda reencarnação é um fato, e mais, uma necessidade. Óbvio que Lucas Veras vai preferir sintonizar com o materialismo, em vez de buscar seus pares, médicos que integram as associações médico-espíritas, para se aprofundar nessa área.  Somente sobrevoou os conceitos espíritas. Que pena!

O tema da "criação de almas", abordado pelo autor, compõe uma síntese pobre (ver primeiro parágrafo da p. 18) do que é a Doutrina Espírita. Ao final da p. 17, Lucas quase homenageia a Doutrina Espírita, quando fala em racionalidade, mas se perde logo adiante.  Envereda pela aparente injustiça divina, quando Deus escolhe a alma que vai para Paris, a que vai para a favela. A que será filha de Hitler, a que será filha da Rainha Elizabeth. Lucas critica a estratégia da Divindade, mas não explica qual a alternativa que se contrapõe à banalização proposta. Nós, eu e o senhor, sabemos que nosso querido amigo, seu filho, só vê solução para as desigualdades com a implementação do socialismo.

Que pena que Lucas não absorveu o que leu outrora sobre livre-arbítrio. Porque o fez en passant, superficialmente. Nada absorveu sobre livre semeadura, sobre o determinismo da colheita. 

Voltemos nossa atenção para o capítulo Sexo.

À p. 21, o autor conclui: "Se o instinto sexual não existisse, nenhum animal existiria. Não existiria a vida." Cá entre nós, Dr. Magno, que conclusão mais óbvia! E cá entre nós poderíamos acrescentar: "Como Deus é sábio ao definir esse recurso para a procriação!".

Nesta parte, em meio às críticas ao celibato e aos preceitos e exageros da Igreja Católica ao longo da história, nosso autor pelo menos preserva o Espiritismo, quando repete um conceito espírita — "Usar o sexo com responsabilidade". Porque seremos vítimas, certamente, de nossos desregramentos.

Lucas acerta quando constata a desigualdade com relação aos direitos da mulher ao longo da história. Erra quando, de forma simplória, critica a atribuição do gênero masculino a Deus, e que sempre é chamado de Pai.  Bem, Deus ao longo dos tempos já foi, sim, classificado como entidade feminina. Se por um lado a Igreja Cristã sempre teve algum tipo de incômodo para esclarecer essa situação, eu mesmo não vejo constrangimento algum. Como Deus teria sexo? sendo Ele "a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas"? [ver O Livro dos Espíritos, questão 1] 

Complicado atribuir gênero a Deus, mas há de se convir que é complicado demais se referir à Divindade sem dar gênero às palavras. "Para falar sobre Deus, nós precisamos chamar Deus de algo, já que não há como se esquivar dos pronomes e simplesmente ignorá-los". Há muitas coisas que nós, religiosos, cristãos, não vamos entender ainda. Mas os materialistas primam também por não explicar, em contrapartida, os vácuos de entendimento. O que não se admite é que pessoas cultas e inteligentes só acreditem naquilo que podem ver, cheirar, sentir o gosto ou apalpar.

Nosso autor espera que, por questão de coerência, as religiões deveriam se aprofundar no ato sexual em si, sendo o assunto ventilado nos compêndios religiosos. Menciona o celibato na igreja católica como antinatural. Como desdobramento disso, fala da pedofilia. Bem, o próprio Papa Francisco, um autêntico renovador, nas mudanças que tem proposto na doutrina de sua igreja, tem pisado em ovos, diante de conceitos arraigados e seculares. Usa da prudência. No entanto, sabe-se que se a igreja romana não promover as necessárias transformações não sobreviverá. 

Quando Lucas Veras proclama que prazer é pecado, segundo as religiões, ele busca o que é lhe mais conveniente, já que essa premissa é falsa e não é espírita.

Eis o que o nosso querido Francisco Cândido Xavier disse em 1971:

Se as potências do homem na visão, na audição, nos recursos imensos do cérebro, nos recursos gustativos, nas mãos, na tactividade com que as mãos executam trabalhos manuais, nos pés, se todas essas potências foram dadas ao homem para a educação, para o rendimento no bem, isto é, potências consagradas ao bem e à luz, em nome de Deus, seria o sexo em suas várias manifestações sentenciado às trevas? — Chico Xavier, em entrevista - Programa Pinga-Fogo, Rede Tupi – 1971

Quando fala de felicidade na vida eterna, Lucas classifica tudo isso como uma tática dos representantes das religiões para impor a submissão. Assim, o povo restaria passivo perante os poderosos, sem defender os seus direitos, aceitando, como cordeiro, os regimes autocráticos.  Bem, nesse ponto, é louvável a condenação do autor às ditaduras. Mas nós que conhecemos Lucas, sabemos ele é controverso no ato de admirar o regime despótico vigente na Venezuela e em Cuba.

Registre-se que, nessa parte, sabemos que a religião interferiu sim nos regimes, nos costumes, nas condenações. O conceito reencarnacionista, que estava presente nos ensinos de Jesus, foi cuidadosamente retirado das traduções do Novo Testamento.  O fato intrínseco à teoria da reencarnação é a abolição do "inferno", como um local de penas eternas. Isso colocava em xeque o poder dos sacerdotes sobre os fiéis, que errônea e comodamente poderiam deixar para depois a sua transformação interior. 

Veja só, Dr. Magno, o texto que se segue, de Simonetti, que nos instiga a pensar e pensar sobre a influência que exercia a Igreja. E sobre a reencarnação, a base para sanar todos os "mistérios". 

FOFOCA HISTÓRICA
Teodora (500-548), esposa de Justiniano (483-565), tinha birra da reencarnação.
Jovem da classe pobre, fora cortesã antes que o imperador se empolgasse por sua beleza. Paixão fulminante, que a promoveu à mulher mais poderosa do império.
Por isso mesmo, julgava absurdo sujeitar-se ao ciclo das vidas sucessivas, a fim de habilitar-se ao paraíso. Mais razoável uma transferência imediata, consideradas as prerrogativas de sua posição.
Assim, sob sua inspiração, Justiniano escreveu um tratado contra a reencarnação e determinou que o patriarca de Constantinopla reunisse um sínodo, em 543, para prescrevê-la.
Posteriormente, essa condenação foi apoiada pelo Papa Virgílio e demais patriarcas da Igreja.
A influência de Teodora será, talvez, mera fofoca histórica, mas é significativo  constatar que até o século VI a ideia da reencarnação era aceita por boa parte dos teólogos, destacando-se Orígenes (185-254) e Clemente de Alexandria (150-215)
A proscrição atendeu a motivo mais prosaico: a partir da institucionalização do Cristianismo, atrelado ao carro do poder temporal, o Céu passou a ser uma concessão da fé.
Em tal contexto, não havia lugar para a reencarnação, que substitui a salvação pela evolução, ensinando que todos temos uma meta a atingir – a perfeição, a partir do esforço pessoal, independentemente dos favores de uma religião.
Não obstante, qualquer leitor atento do Novo Testamento perceberá que Jesus e seus discípulos admitiam as vidas sucessivas.
A ideia está muito clara em várias passagens, dentre elas:
— Atendendo uma indagação de Jesus, os discípulos dizem que o povo julgava fosse ele Elias, Jeremias ou outro profeta (Mateus: 16). Evidente que se aceitava a reencarnação na comunidade judaica.
— Jesus se refere a João Batista como a reencarnação de Elias (Mateus: 11). Diziam as escrituras que o profeta voltaria para anunciar o Messias.
— Jesus diz a Nicodemus que é preciso nascer de novo para ganhar o Reino de Deus (João: 3). E explica como é possível “entrar de novo na barriga da mãe”, segundo a expressão de seu interlocutor.
— Os discípulos indagam, diante de um cego de nascença, quem pecou para que isso acontecesse (João: 9). A pergunta não teria sentido se não admitissem a anterioridade da vida física.
— Jesus refere-se aos que não podem mais morrer (Lucas: 20). Só é possível “remorrer” vivendo mais de uma vez.
— Jesus curou um homem paralítico havia 38 anos e lhe recomendou que não pecasse mais para que não lhe sucedesse pior (João: 5). Se a expectativa de vida não chegava a meio século, como justificar tão longo sofrimento por falta cometida em inimputável infância ou adolescência?
Se no passado aconteciam interpolações, supressões e adulterações nos textos evangélicos, precariamente preservados, por que os teólogos não eliminaram a ideia reencarnacionista, claramente enunciada no Novo Testamento?
É simples entender.
Até o século IV, havia uma quantidade imensa de textos apócrifos, de legitimidade duvidosa – Evangelhos de Pedro, Maria, Paulo, Felipe, Bartolomeu, Tiago...
O papa Dâmaso (304-384) decidiu, então, convocar um monge de grande cultura, Euzébio Jerônimo (347-420), que deveria efetuar a tradução da Bíblia para o latim, selecionando, no Novo Testamento, os textos de autenticidade não questionada. Surgiria dali a Vulgata, a versão oficial da Igreja Católica.
Ocorre que Jerônimo, presumivelmente reencarnacionista, conservou as passagens que lhe faziam referência.
Perto de um século e meio depois, quando se pretendeu eliminar a reencarnação, estavam consolidados os textos da Vulgata e já não era possível mudar.
Isso obrigou os teólogos a raciocínios tortuosos para explicar textos que ficam obscuros e sem sentido, se não admitirmos as vidas sucessivas.
Daí a contradição – nega-se a reencarnação, mas ela está presente no Evangelho.
Equivale a tapar o sol com a peneira.
De todas as distorções cometidas na Idade Média, a eliminação do princípio reencarnacionista foi, talvez, a mais grave.
Sem essa base fundamental para melhor compreensão da justiça divina, os teólogos perderam-se em fantasias escatológicas, que exigem boa dose de ingenuidade para serem aceitas.
A reencarnação é uma lei divina.
Conseqüentemente, mais cedo ou mais tarde todas as religiões acabarão por assimilá-la, assim como se viram forçadas a admitir que a Terra não é o centro do universo, ante o avanço inexorável do conhecimento humano.
Se não o fizerem, serão atropeladas pelo desenvolvimento da cultura reencarnacionista, que tem no Espiritismo seu representante maior.
Não há como nos furtarmos ao óbvio:
O princípio das vidas sucessivas é a chave indispensável para equacionar os enigmas da Vida, sem fofocas! — Richard Simonetti, em Para rir e refletir

Se muitos religiosos poderosos mandaram matar em nome de Deus, ora, há crápulas e ignorantes em todos os segmentos da sociedade! Faz parte do show. Um dia não haverá mais, dentro da irrefutável lógica divina.

Lucas Veras comete um deslize à p. 24 de "Deus, o grande mito", quando diz que "as incoerências em relação ao sexo estão em toda a história do cristianismo. A prostituição foi combatida, execrada e punida com morte, mesmo depois de Jesus ter perdoado a prostituta: 'quem não tiver pecado, que atire a primeira pedra'".  Ora, essa condenação vigente era da lei mosaica e não de Jesus. E naquele momento delicado, Jesus, esbanjou habilidade, para não ir contra a lei instituída. Os acusadores foram se retirando um a um, e o Mestre apenas perguntou onde estavam os acusadores. Não havendo ninguém mais, Jesus afirmou que não condenava aquela mulher que estava sendo julgada por adultério. Não perdoou nada, Dr. Lucas — apenas disse em seguida: "Vá e não peques mais".

Mas é conveniente finalizarmos nossas considerações sem nos desviarmos do tema "sexo" abordado no capítulo. Apelamos para Jorge Andréa, médico psiquiatra, em trechos retirados da obra Forças Sexuais da Alma:

[...] Não é a renúncia e ausência de sexo físico que eleva. O sexo deve ser observado e equilibradamente utilizado nas fases da vida: mocidade, maturação e velhice. Mesmo quando não há mais necessidade do contato sexual (da complementação física), o sexo continua presente, desenvolvendo funções mais altas e com maior significado — a fase física foi suplantada. A castidade, quando alcançada, deverá ser sempre observada sem tormentos, em qualquer fase da vida. Quando na organização física suplantamos todas as fases do sexo, em suas harmoniosas vivências, atingiremos, na posição espiritual, degraus mais significativos, para nós desconhecidos, de uma fase supersexual [de emoções mais nobres] — p. 18 (op. cit.)
[...] Sexo é vida, é evolução, quando as emoções pulsam nas asas do bem comum. Sexo é luta, tormento, desequilíbrio, atraso evolutivo, quando abastardamos os sentimentos na satisfação sexual temporária animal, que não acompanha o sentido maior da vida, onde estão sempre presentes os implementos da sinceridade e trocas de afetividade. [...]  — p. 19 (op. cit.)

Passemos ao capítulo Os pecados de Deus.

Resume-se este capítulo na crítica de Lucas ao que consta em várias partes da Bíblia (especificamente Velho Testamento) sobre um Deus rancoroso, genocida, vingativo, raivoso, indeciso, pois se arrependia do que fazia. Quase chega a explicar isso com propriedade, na p. 29, quando pondera ele mesmo — "um Deus criado por um povo primitivo que precisava de 'rédeas curtas' para existir enquanto povo".

Ao imprimir humor às suas conjecturas, afirma, na p. 29, sobre os Dez Mandamentos: "[...] há sempre uma ameaça, muitas vezes de morte, para a desobediência. E Deus se aborrece também! É bom não irritá-lo [...]".

O nome do capítulo vem deste parágrafo:

[...] É importante notar que, pelo velho testamento, só o próprio Deus poderia romper suas próprias leis, coisa que fazia a toda hora. Citaremos muitos exemplos neste mesmo capítulo. Não se tem notícia de tanta mortandade feita pelo diabo. Aliás, se formos computar os pecados que Deus cometeu pela sua própria lei, o diabo ficaria humilhado. [...] – VERAS, Lucas. "Deus, o grande mito", p. 28

Esse Deus objeto do livro de Lucas poderia ser perfeitamente grafado com minúscula. Porque não é o Deus que a gente conhece, aquele de que Jesus nos trouxe notícias. O Mestre e Modelo Maior teve que exercer um enorme jogo de cintura — como se fala popularmente — quanto à lei mosaica, vigente à sua época.

Vale a pena reprisar que o Velho Testamento foi escrito pelos homens. Queria que conhecesse, Dr. Magno, meu texto Quanto pesa a Bíblia sobre a questão do entendimento do Velho Testamento. É bem simples. Não sei se Lucas se daria a essa leitura.  Aproveito também para reprisar texto de Herculano Pires, extraído de Visão Espírita da Bíblia, p. 32.  

Todo espírita suficientemente conhecedor da sua doutrina sabe que não deve emaranhar-se nos velhos textos. Mas sabe, também, que não pode aceitar as tentativas materialistas [...]  Há um abismo entre a aceitação dogmática da Bíblia e a sua rejeição erudita, baseada em pesquisas e interpretações formais do texto, realizada por homens sem a devida formação espiritual. Mas no meio desse abismo existe um caminho seguro, que é o traçado por Kardec: o caminho da interpretação compreensiva, da interpretação sem apego e sem prevenção. Esse é o único caminho verdadeiramente espírita [...]

Claro que Lucas Veras não trilhou esse caminho e nem quer perder seu tempo com isso. É muito mais interessante para ele criticar.

Cuidemos do capítulo Os santos.

Basicamente trata-se de crítica ao processo de santificação católico, passando pelo dogma da infalibilidade papal.  É um dos capítulos mais engraçados do livro "Deus, o grande mito". E é por isso que vou transcrever algumas partes.

[...] Se você quiser alguma graça, basta pedir ao santo tal que ele intercederá por você junto a Deus, que, apesar de ser onisciente (sabe tudo), precisa de assessores para poder "gerir" melhor os pedidos. [...]
[...] O céu funciona assim como um reino absolutista da idade média [...]
[...] Há santos especialistas em cada parte do corpo: Santa Luzia é dos olhos; [...] Há também setorização por tipo de causa. [...]
[...] Deus envia raios e trovões sem pontaria e Santa Bárbara corrige para não acertar na pessoa [...]
[...] se o papa é infalível [...] qual foi o que errou? O que condenou ou o que santificou Joana d'Arc? [...]. — VERAS, L. Deus, o grande mito. pp. 32-33.

Não merece aqui fomentarmos polêmica, e/ou abraçar aquilo em que Lucas tem razão na questão da beatificação dos santos e no ato de pessoas sem condições morais terem se tornado santos.  Vou me restringir tão somente ao equívoco do autor de que os santos da igreja católica são chamados de espíritos de luz pelos espíritas. Emmanuel, André Luiz, Meimei, Caibar Schutel, Eurípedes Barsanulfo, Cícero Pereira, Bezerra de Menezes, são apenas companheiros de caminhada, que pelo seu esforço para a própria iluminação e dos semelhantes, têm ascendência moral sobre nós, e como tal podem nos ensinar algo. O único espírito de luz que passou pelo planeta se chama Jesus. 

Vejamos o  capítulo Os espíritos.

Na orelha de seu livro, logo abaixo de sua foto, Lucas Veras revela ter efetuado um profundo estudo das religiões e revela ter sido espírita, influenciado pelo senhor, Dr. Magno.

À p. 35, o autor tenta fazer uma distinção entre alma e espírito. Não acreditando nem em um, nem em outro, não merece comentário se Lucas chegou a alguma conclusão.  À  p. 36 temos no segundo parágrafo texto ambíguo sobre os espíritos com os quais Kardec tinha contato.  Vemos ao longo do capítulo textos mal trabalhados, como se o autor estivesse apressado por terminar sua obra.  Até que, de repente, o texto se transforma mais em crítica ao Espiritismo do que outra coisa mais. A síntese que o autor faz do que é a Doutrina Espírita é no mínimo hilária.

Ao discorrer sobre a Lei de Causa e Efeito, a seu modo jocoso, lança uma premissa — todas as religiões primam pelo conformismo para com o sofrimento.  Bem, na Doutrina Espírita, o autor Herculano Pires equaciona bem a questão. Existe o conformismo, que é passivo. E existe a resignação, que é proativa. Neste último, a pessoa entende o seu sofrimento e faz todo o possível para reverter a situação (e entende que sempre existe uma causa concreta para a dor que lhe golpeia).

Ao final do capítulo Lucas fala com desdém do planejamento intenso implementado pelas equipes divinas que acompanham — e planejam, sim —  cada renascimento na Terra.     

Voltemos à observação feita no primeiro parágrafo.

Certa feita estava eu em uma banca de revistas da Praça da República em São Paulo. Vendo exposto um Evangelho Segundo o Espiritismo, perguntei ao proprietário se ele era espírita. Ele disse que tinha de vender de tudo, atender a todo tipo de cliente. Já tinha sido espírita, mas só "até o dia em que encontrou Jesus". Eu não sabia se ria ou se chorava diante de tal afirmação estapafúrdia.  Ora, o homem nunca havia sido espírita. Nunca mergulhou nos preceitos da Doutrina. Jesus, para os espíritas é o grande enviado por Deus, é a inspiração diuturna de todo espírita, o Filho do Homem, o Mestre por excelência. 

Lucas se disse espírita um dia. Nunca foi! Nunca estudou a fundo. Se houver uma próxima edição de "Deus, o grande mito", deveria ter a lisura de não dizer ter sido espírita. A propósito, esse livro carece também de acurada revisão textual antes de qualquer nova tiragem. 

Passemos para o  capítulo Os crimes de Deus.

Em suma, Lucas vai buscar na Bíblia todos os sinais de um Deus parcial, injusto, preconceituoso, violento, sanguinário, que vira e mexe manda matar.

À p. 45, o autor parece que tem um lampejo, um rasgo de lucidez, ao afirmar: "O primitivismo de Deus retrata o primitivismo daquele povo e daquela época".  Fala até em "belos conceitos" trazidos por Jesus. Mas volta a si logo a seguir: "Deus é a grande resposta para a nossa preguiça mental ou para o nosso consolo, ou desconhecimento, ou mesmo nossa ignorância".  Refere-se à ignorância dos que creem numa Força Superior que a tudo preside. Ao ironizar que Deus vê tudo, Lucas — com base nos relatos da Bíblia — afirma que se Deus protege das catástrofes, ele também cria as catástrofes...

Pouco há de se comentar nesse capítulo. A não ser que se diga que esses caminhos que o autor está trilhando não são nada inéditos.  

Pelo menos, deixemos aqui, para reflexão, um trecho de Léon Denis, de Cristianismo e Espiritismo, escrito ao final da segunda década do séc. 20:

[...] O pensamento do Cristo subsiste no ensino da Igreja e nos sagrados textos, mesclado, porém, de vários elementos, de opiniões ulteriores, introduzidos pelos papas e concílios, cujo intuito era assegurar, fortalecer, tornar inabalável a autoridade da Igreja. Tal foi o objetivo colimado através dos séculos, o pensamento que inspirou todos os retoques feitos nos primitivos documentos. A despeito de tudo o que na Igreja resta de espírito evangélico, verdadeiramente cristão, foi o suficiente para produzir admiráveis obras, obras de caridade que fizeram a glória das igrejas cristãs e que protestam contra o fato de se acharem associadas a tantos ambiciosos empreendimentos, inspirados no apego ao domínio e aos bens materiais.

Seria preciso grande trabalho para destacar o verdadeiro pensamento do Cristo do conjunto dos Evangelhos, trabalho possível, posto que árduo para os inspirados, dirigidos por segura intuição, mas labor impossível para os que só por suas próprias faculdades se dirigem nesse dédalo em que com as realidades se misturam as ficções, com o sagrado, o profano, com a verdade, o erro [...]. — p. 31 - Cap. Origem dos Evangelhos

Neste capítulo, prometo me esforçar para não ser repetitivo. Vamos às observações sobre O poder.

Quando Lucas Veras fala de poder, exercido nas tribos primitivas pelo cacique e pelo pajé, fica implícito o senso que o homem tinha em relação ao que para ele era sobrenatural. E, naturalmente, em tudo aquilo que ele não entendia bem, tinha uma noção (correta) de que havia um poder maior que se sobrepunha ao efêmero poder dos homens. Os sacrifícios eram devidos pura e simplesmente à forma de pensar ainda incipiente (insipiente também, em decorrência) dos homens e não de Deus.

Quanto à afirmação de Lucas "A exploração financeira, vendendo o céu e ameaçando com o fogo do inferno, rende lucros enormes e ainda hoje movimenta verdadeiras fortunas retiradas de pessoas de 'boa-fé'", não cabe comentar. A nossa religião, Dr. Magno, o senhor sabe, não faz isso. E Lucas sabe também, e deveria deixar isso claro no seu desabafo. Só podemos acrescentar que o plantio é livre, mas a colheita é obrigatória. Assim, ninguém ficará impune, pois existe a Lei de Causa e Efeito. Ou seja, o que Lucas chama de "bando de corruptores mentais que não trabalham" será tratado como bando.

Passemos ao capítulo .

Lucas afirma mais uma vez: "Fé é a capacidade de acreditar no inacreditável" - p. 51.

Vamos apenas nos ater ao que afirma Eduardo Augusto Lourenço em seu artigo "A religião e a ciência — lado a lado na evolução":

O grande mestre, Allan Kardec, sempre preocupado com a veracidade dos fatos, não hesitou em estudar, questionar e pesquisar, pondo em prática a razão sobre os acontecimentos ocorridos, dizendo: “Ciência e Espiritismo se completam e necessitam um do outro”, “Ciência e Religião são duas alavancas da inteligência humana”.

José Herculano Pires – considerado por Emmanuel “o metro que melhor mediu Kardec” – disse que, “ao realizar semelhante fusão, preenchendo a velha lacuna entre a razão e fé, entre ciência e religião, deu ao Espiritismo o cunho de verdadeira síntese do conhecimento”.

Do mesmo artigo, pincemos "frases de alguns cientistas de renome, que ao longo do tempo vieram confirmar que a religião e a ciência são caminhos que se cruzam e se entrelaçam na jornada terrena": 

— Karl Ernst von Baer (1792-1876), biólogo, pai da embriologia: “O bondoso Criador colocou quatro desejos no homem, pelos quais podemos dizer que este é segundo a imagem de Deus: a fé, a consciência, o desejo de saber, o sentido pela estética”.  
— Justus von Liebig (1803-1873), químico, patrono da Universidade de Giessen, Alemanha: "O conhecimento da natureza é o caminho para a admiração do Criador”. 
— Werner Heisenberg (1901-1976), ganhador do Prêmio Nobel de Física de 1932: “O primeiro gole do copo das ciências naturais torna ateu; mas no fundo do copo Deus aguarda”. 
— Thomas Edison afirma que desenvolveu a lâmpada e inventou o fonógrafo em 1877 movido pelo desejo de gravar a voz de sua falecida mãe, o que não conseguiu, principalmente, devido à precariedade do aparelho (ciência que é chamada de transcomunicação, através de aparelhos eletrônicos como: televisão, rádio e computador). 
— O cientista Albert Einstein, físico, criador da teoria da relatividade, dizia: "A ciência sem a religião é manca, e a religião sem a ciência é cega". "Sustento que o sentimento religioso cósmico é o mais forte e o mais nobre incitamento à pesquisa científica". 
— Isaac Newton (1642-1727), físico, criador da teoria da gravidade, dizia: “Que o espírito nada mais é do que um corpo de luz e não material” e que “devemos crer em um Deus e não ter outros deuses além dele. Ele é eterno, onipresente, onisciente, onipotente, criador de todas as coisas, sábio, justo, bom e santo. Devemos amá-lo, temê-lo, honrá-lo e confiar nele, orar a ele, dar-lhe graças, louvá-lo e santificar seu nome, cumprir seus mandamentos e dispor de tempo para honrá-lo em culto”. 
— Louis Pasteur (1822-1895), cientista que desenvolveu o processo de pasteurização, a vacina antirrábica, declarou: "A ciência nos aproxima mais de Deus" e "Um pouco de ciência nos afasta de Deus, muito nos aproxima" [...]. 
— Wernher Von Breaun (1912-1977), conhecido como o pai do programa espacial americano, diretor da Nasa, e um dos maiores cientistas espaciais do mundo, disse: "Os evolucionistas desafiam a ciência a provar a existência de Deus". 
— Blaize Pascal (1623-1662), matemático, físico, filósofo e escritor francês, dizia: "Duvidar de Deus é crer em sua existência". 
— Karl Friedrich Gauss (1777-1855), matemático e físico, dizia: ”Existem questões a cuja resposta eu daria um valor infinitamente maior do que às matemáticas, por exemplo, questões sobre ética, sobre nosso relacionamento com Deus, sobre nosso destino e nosso futuro. Para a alma existe uma satisfação de espécie superior, para a qual dispenso o que é material”.
        

Quando o nosso autor, Lucas Veras, menciona que quase 100% da população acredita em um Deus, ele está praticamente reconhecendo que seu livro "Deus, o grande mito" constitui desabafo que rema contra a maré. É sabedor de que pouquíssimas pessoas vão ler com atenção seu livro inteiro, como fiz. O capítulo "Fé" é uma miscelânea de conceitos, em que Lucas junta clichês equivocados como o de que "Deus nos levará à felicidade eterna".

Foi na casa de Lucas Veras que folheei pela primeira vez "O banquete", de Platão. Sei que nosso autor gosta muito de Platão. Mal sabe ele que Sócrates e Platão foram precursores do Cristianismo e do Espiritismo, nas suas convicções sobre a imortalidade da alma e a pluralidade das existências...  

Passemos ao capítulo O pecado.

Nesta parte nosso autor fala do pecado original. Parte de uma premissa que não é aceita com unanimidade por todos os cristãos. As críticas que faz sobre o erro e a tradição bíblica não são inéditas. Muitas são chavões. E suas críticas já foram feitas por cristãos e materialistas. Nada é inédito.

Sobre o Espírito do Mal, o diabo, equivoca-se novamente o autor em dizer o que os espíritas acham ou não acham disso (p. 59).

Acertadamente, Lucas fala em inferno, penas eternas, felicidade eterna, como instrumento de dominação. Parece desconhecer, porém, que o Catolicismo, com receio de que seus sacerdotes  perdessem a hegemonia sobre os fiéis cultuou o inferno como um local de penas eternas. Parece desconhecer que ao colocar padres, pastores, médiuns e rabinos como detentores da verdade que tripudiam os "pobres mortais", "impingindo a lei da obediência", o autor está nivelando todos os preceitos das várias religiões. Mas ele sabe que os preceitos são muito diferentes.     

Passemos os olhos sobre o capítulo  O diabo.

Aqui Lucas leva a sério uma história que está na Bíblia, escrita pelos homens ao longo de mais de 1.000 anos.

Quando fala do fogo eterno, o autor deveria ater-se ao sentido figurado de fogo na consciência. Que dói muito. Mas que não é eterno!

Quando fala de obsessores, Lucas sabe que eles não se restringem ao plano extramaterial. Ao ver minha crítica ao seu livro, quem sabe não me considere um obsessor?

Bem, penso que o resumo do capítulo está na brilhante frase de nosso autor: "O diabo fica rondando você tentando induzi-lo a fazer o mal. Deus está tentando defender você, nada mais que um mero coadjuvante nessa luta". Ou seja, se essas duas entidades existirem, Deus e o diabo, então, segundo Lucas (não confundir com S. Lucas) somos zero à esquerda nas mãos deles.

Bem, felizmente Lucas também não acredita no diabo. 

Passemos os olhos sobre o capítulo O destino.

O nosso autor já ouviu várias vezes este conceito — "Nós escrevemos o nosso destino a cada dia. Nós delineamos o nosso futuro por meio das nossas ações". Isso nos tiraria o gosto de viver, escreveu Lucas. Ledo engano! Isso é que nos impele a viver melhor.

A teoria de que tudo acontece porque "Deus quis" é equivocada e no livro "Deus, o grande mito" é alardeada como se todas as religiões compactuassem com isso.

No que concerne à repetição em vários momentos de que o esquecimento temporário de nossas vidas passadas é uma balela, penso que não deverá aqui ser contestada. Lucas está descrente por ora. Nos intervalos entre as reencarnações, estará frente a frente com as lembranças de vidas anteriores no momento oportuno.

Um chavão equivocado de Lucas é de que é impossível haver uma programação de onde o espírito vai nascer, e onde e como vai morrer. Mal sabe ele que existem, felizmente, equipes na outra dimensão que cuidam muito bem disso.

Outra repetição equivocada do nosso autor é que os cristãos não têm personalidade. São mansos, cordeiros, despidos de vontade própria, em função do "Deus proverá".   

Tentemos entender as ilações de Lucas no capítulo Deus.

Nós outros não pensamos muito na supremacia divina, na criação do universo, convictos de que o assunto é grandioso e vai além da nossa capacidade (por enquanto). O nosso autor de "Deus, o grande mito", no entanto, também não consegue explicar, obviamente. Mas refuta a existência de um Princípio Inteligente (Supremo para nós) por trás de tudo o que existe neste universo — que embora Lucas não concorde — está em perfeito equilíbrio.

Cabe dizer aqui que a teoria da evolução das espécies não exclui Deus...

Quem teria criado Deus, onde Ele habita, como é onisciente, são questões que não nos preocupam. Mas isso deve ser um drama para o nosso querido autor. Haja vista a confusão que reina em sua mente com os relatos fantasiosos que ele coletou em seus "estudos", fazendo disso uma grande salada.  

Esse Deus imperfeito que Lucas retrata no capítulo morreu com o advento do Cristo. Era primitivo, de conformidade com a evolução dos homens de então. Lucas tem razão quando reprisa as características humanas desse Deus, mas não faz esforço para entender isso com naturalidade.

No que tange ao comentário de que tudo de bom que nos acontece vem acompanhado de um "graças a Deus", transcrevo texto adaptado de um e-mail da professora Maria Tereza Piacentini:

GRAÇAS A DEUS...
[...] Esses últimos dias foram densos e tristes, pois visitei uma amiga cuja filha de 26 anos se suicidou, e outra cuja filha da mesma idade, que em função de um câncer no reto teve o útero e ovários queimados pela radioterapia. Naturalmente eu não poderia dizer a essas duas amigas: “graças a Deus ela se foi”  ou “graças a Deus ela não vai mais ter filhos”, embora as minhas amigas tenham conhecimento de que Deus está em tudo na Criação. Primeiro, porque semanticamente estou usando uma palavra de carga positiva: graça é favor, dádiva; graças significa agradecimento; graças a tem o sentido de “com o auxílio de”. Além disso, queremos Deus associado a coisas boas: saúde, paz, prosperidade, sobrevivência a um acidente...
Entretanto, ao lado disso existe uma locução que perdeu seu valor semântico inicial e pode ser usada até mesmo por ateus: é o “graças a deus” que quer dizer felizmente. E aqui deveria ser um deus minúsculo, como em deus-nos-acuda (agora lamentavelmente sem hífen). Pela dinâmica da língua, com o passar do tempo a noção inicial de muitas expressões acaba se perdendo. Esse fenômeno linguístico acontece também em outras línguas; veja por exemplo o caso de adeus [a Deus], em francês adieu,  em inglês goodbye, que originalmente era “God be with ye” (Deus esteja contigo).
Em inglês existe uma expressão equivalente ao nosso graças a Deus, que é thank God (Thank God you are alive! – Graças a Deus você está vivo!), mas não é  muito comum.

No capítulo As crendices do dia a dia, nosso autor fala de crendices, conceitos piegas, amuletos, medalhas milagrosas, exploração de pessoas desavisadas, retribuições espirituais em face de doações em dinheiro. Direciona suas críticas com ênfase a estratégias das igrejas católica e evangélicas (imagino que as novas). Os erros todos que aponta estão a cargo dos homens. E não de Deus.

Estamos perto do final, passando agora ao capítulo As contradições das religiões derivadas do Judaísmo.

À p. 82 de "Deus, o grande mito", é dito que "O espiritismo ignora o Velho Testamento e só aceita as ideias de Jesus". Ilação equivocada. Consulte-se Herculano Pires, em Visão espírita da Bíblia, ao rebater conceitos de pessoa que afirmara a mesma coisa: "Compreendo que o confrade queira combater o apego de certas religiões ao texto bíblico, à letra que mata. Mas não compreendo como, para fazer isso, ache necessário colocar o Espiritismo numa posição tão incômoda diante da Bíblia".

No entanto, o resumo do capítulo de Lucas Veras está nos dois últimos parágrafos, com os quais concordamos:

[...] Em nome de Deus, essas religiões [refere-se o autor ao Catolicismo e ao Protestantismo] já mataram milhões para impor cada uma sua ideia do que deve ser Deus, do que deve ser o perdão, o amor. E continuam matando...

Vale dizer aqui que Deus não tem nada a ver com isso... Merece aqui destacar uma frase interessante do autor: "Não há relatos na história de povos que se matam para provar que são mais ateus que os outros". Bem, com os ateus que conheço nem dá para montar um time de futebol.

Passemos ao capítulo Religião e Ciência.

Nosso autor quer provar que à época em que preponderou o poder da Religião (leia-se católica) preponderou também a ignorância, as atrocidades, os desmandos em nome de Deus. Não precisa provar. Já está provado.

Diz ainda o nosso autor que religião e ciência são conceitos absolutamente conflitantes. A evolução da Física Quântica, com certeza, vai clarear essa questão. Para o Espiritismo, porém, não resta dúvida alguma de que Religião e Ciência se casam e assim será sempre.

Interessante o fato de Lucas afirmar que até agora ninguém provou cientificamente que o inferno existe (p. 88). Ora, como o inferno não existe, ninguém precisa provar nada. O que existe é consciência infernizada.

Estudiosos afirmam que "o empirismo causou uma grande revolução na ciência, pois graças à valorização das experiências e do conhecimento científico, o homem passou a buscar resultados práticos, buscando o domínio da natureza. A partir do empirismo surgiu a metodologia científica".  Ora, qual foi a postura de  Kardec quando na França da segunda metade do séc. 19 eram comuns as reuniões com mesas que se moviam e mandavam mensagens? Foi estudar o fenômeno. Havia algo de inteligente por trás.

Na obra O que é a mediunidade, de Celso Martins, consta o seguinte:

O Espiritismo tem um aspecto científico porque estuda, à luz da razão e usando critérios científicos, com metodologia específica, os fenômenos mediúnicos, ou melhor, os fatos que colocam os homens em contato com os espíritos, ocorrências estas que nada têm de sobrenatural, porque estão dentro do contexto dos fatos naturais, nada apresentando de milagroso nem de superstições do povo crédulo e ignorante.

Muito esclarecedor é o texto que se segue, constante de A Gênese, Cap. I - item 14, de Kardec:

Como meio de elaboração, o Espiritismo procede exatamente da mesma maneira que as ciências positivas, isto é, aplica o método experimental. Fatos de ordem nova se apresentam, que não podem ser explicados pelas leis conhecidas; ele os observa, compara, analisa e, partindo dos efeitos às causas, chega à lei que os rege, depois deduz as consequências e busca as aplicações úteis. O Espiritismo não estabeleceu nenhuma teoria preconcebida; assim, não se apresentam como hipótese nem a existência e a intervenção dos Espíritos, nem o perispírito, nem a reencarnação, nem qualquer dos princípios da doutrina; conclui-se pela existência dos Espíritos porque essa existência resultou como evidência da observação dos fatos; e assim os demais princípios. Não foram os fatos que vieram posteriormente confirmar a teoria, mas foi a teoria que veio subsequentemente explicar e resumir os fatos. Rigorosamente exato, portanto, dizer que o Espiritismo é uma ciência da observação e não o produto da imaginação. As ciências não fizeram progressos sérios senão depois que os seus estudos se basearam no método experimental; mas, acreditava-se que esse método não poderia ser aplicado senão à matéria ao passo que o é igualmente às coisas metafísicas.

Não há como deixar de formular a pergunta sobre o fenômeno Chico Xavier. Como Lucas Veras explica o fato de uma pessoa que só teve o curso primário escrever de olhos fechados 412 livros, alguns da mais alta complexidade? e que nos dão, na maioria das vezes, notícias daquele local desconhecido, situado numa dimensão que não vemos e não apalpamos? Seria uma farsa?

Juntemos os capítulos A prece, a moral e a ética.

O autor fez um excelente resumo de tudo que já foi falado por ateus sobre a prece. Fala de determinismo, fala do quanto a prece é desnecessária. Reconhece porém que estudos científicos "têm provado que a prece melhora, cura mais rápido, resigna". (p. 90)

Mais uma vez ignora a Lei de Causa e Efeito, ao delinear um Deus que "conhece suas necessidades, seu sofrimento, e o deixa sofrer".  É simplório ao argumentar que a gente pede a Deus para uma pessoa não morrer e Deus a deixa morrer. Mais simplório ainda quando num jogo de futebol, muitas pessoas pedem a Deus pelo seu time. E só um vence.  Como se o Pai Criador fosse se preocupar com resultado de jogo de futebol ou de loteria...

Mais uma vez, critica os crédulos. Mas finaliza com uma grande verdade, a seu próprio desfavor: "E adianta pedir sem merecer?".

No que tange à moral e à ética, a gente tem a impressão que Lucas Veras se compraz com o conceito do Deus humano, vingativo, imprevisível. Um conceito a que o autor se apega para, pelo menos, ter elementos para escrever um livro pleno de afirmações e conclusões que todos os ateus e materialistas já expuseram a mancheias.

Pelo arroubo do autor, quantas e quantas pessoas ditas religiosas devem estar selando o destino de Lucas Veras naquele lugar de sofrimento eterno chamado inferno.   Óbvio que Lucas não vai para lá. Claro, que vai ter a surpresa de deparar com vida incessante. E com tribunais apenas conscienciais — os mesmos que nós outros espiritualistas vamos enfrentar, no uso do livre-arbítrio, porque somos todos artífices do nosso destino — nós, e não Deus!

No intervalo desses arrazoados, encontrei Glorinha, a irmã de Lucas. E ela me afirmou: "Sabe que eu concordo com muitas coisas que meu irmão expõe no livro?". Fiz minhas observações: "Glorinha, as críticas aos erros das religiões, principalmente a católica, são corriqueiras. Porque os erros, alguns de grande alcance, estão sobejamente nos registros da História".  Valeria a pena citar para Lucas a obra Os cátaros e a heresia católica, de Herminio C. Miranda?  ou aquela da série Mecanismos Secretos da História, Guerrilheiros da intolerância", do mesmo autor? Para Lucas, possivelmente serviria apenas para jogar lenha na sua própria fogueira da intolerância para com Deus e todas as religiões.

Mas pincemos um texto de Os Cátaros, retratando o pensamento que vigorava no séc. 13, época da Inquisição:

[...] A excomunhão, por sua vez, não era simples ato de rotina, como hoje nos poderia parecer; ela arrastava no seu bojo implicações que praticamente punham o excomungado na marginalidade mais que religiosa, social, política e econômica, tudo dentro da melhor legalidade.

A Igreja controlava a vida das pessoas desde o nascimento — e, em alguns aspectos, antes disso — até a morte e além, determinando, segundo as circunstâncias, sua destinação póstuma. Daí a importância do mito do inferno, com seus demônios, as caldeiras, a danação eterna, irremissível, irreversível. Não era necessário nem que os prelados acreditassem em tais fantasias, o povão acreditava e isso era suficiente. [...] (op. cit., p. 63)

Analisem a transcrição acima. Vale a pena dar combustível para Lucas quanto a esses erros terríveis da Igreja? Acho que não. Ele vai misturar tudo isso e envolver protestantes, espíritas, budistas na mesma cesta de fatos e/ou conjecturas. No entanto, mal sabe ele que, pela lei da reencarnação, nós todos, eu, Lucas, Dr. Magno, e muita gente mais do nosso convívio, protagonizamos cenas nesse palco de equívocos em tempos que lá se vão...

No que tange à "parcialidade de Deus" na aplicação das leis, que valeriam para uns e para outros não, configurando um Deus injusto por excelência, Lucas insiste em criticar "princípios retrógrados das religiões". A isso damos o nome de chover no molhado. E ignora a participação de seres humanos (e como tal, falíveis) nas injustiças perpetradas na esteira dos séculos. Tudo evolui. Os conceitos de ética e moral evoluíram. A legislação evoluiu.

Há conceitos no livro Evolução para o Terceiro Milênio que muito seriam úteis para direcionar os conceitos de Moral e de Ética de Lucas para algo proveitoso e não apenas para menosprezar as religiões. Como o trecho que se segue, que nos tranquiliza quanto à simplicidade conferida aos princípios da nossa existência:

[...] Acabamos de anotar que o Universo é regido por um conjunto de princípios que funcionam automaticamente. Homens e mulheres são espíritos imortais encarnados em trabalho de autoaperfeiçoamento, que objetiva alcançar uma vida mais ampla e feliz. A grande maioria negará isso, preferindo acreditar na desordem e na injustiça aparentes no plano material. A verdade, porém, é que todos acabarão reconhecendo tal fato e começarão a esforçar-se por progredir individualmente; até chegar este momento, a Lei promove as condições propícias e a pessoa vai sendo empurrada para a frente, seja como for. [...] — RIZZINI, Carlos Toledo. op. cit., p. 171. São Paulo: EDICEL, 1982.

Passemos rapidamente ao que contém o capítulo A culpa.

Aqui nosso autor afirma que as religiões fomentam o conceito de culpa, para ter seus fieis nas mãos. E que "nenhuma religião existiria sem o complexo da culpa". Na medida em que é inadmissível, nessa questão, colocar todas as religiões como farinha de um mesmo saco — como o nosso autor equivocado e desavisado fez —, melhor desistirmos de comentar.  

Acho que o senhor deve concordar comigo, Dr. Magno — seu filho Lucas deveria ter se aprofundado mais na questão. Cita dentre autores espíritas apenas Ramatís como referência, bem como o livro Cartas de Uma Morta, psicografia de Chico.  Bom seria que lesse Sexo e Destino (Chico e Emmanuel), Forças Sexuais da Alma (Jorge Andréa, médico), Evolução para o Terceiro Milênio — Tratado psíquico para o homem moderno (Carlos Toledo Rizzini, biólogo), Cristianismo e Espiritismo e O Problema do Ser, do Destino e da Dor (ambos de Léon Denis).

Penso que, nessa avaliação de alguns pontos do livro "Deus, o grande mito", não nos cabe condenar determinados pontos de vista e juízos de valor do autor, e aceitar outros. O livro parte de premissas, em sua maioria, erradas. E mentes desavisadas devem lê-lo com muita cautela.  Não nos cabe, penso eu, num processo altamente seletivo, esposar apenas algumas críticas de Lucas, as que consideramos aceitáveis. Isso porque o objetivo maior do livro, no seu bojo,  é exclusivamente provar que Deus não existe, que a natureza e a vida (incluindo a inteligente) é produto do caos, e que a sua perspectiva de vida futura é a perspectiva do nada. Assim sendo, não recomendo o livro para meus filhos e netos.     

No entanto, cá comigo, acho que "Deus, o grande mito" não fará grandes estragos. Seu alcance é mínimo. E seu filho Lucas, querido Dr. Magno,  tem grandes méritos na preocupação com a qualidade de vida das classes mais carentes. Vai pesar bastante a seu favor — quando defrontar-se com os tribunais da consciência — o sem-número de cirurgias que fez nesta jornada terrena, amenizando o sofrimento de milhares de crianças. E que assim seja.

Aristides Coelho Neto, 29.6.2016

EM TEMPO — Lucas publicizou sua teoria — imprimiu livro, divulgou, fez um lançamento oficial. Como não posso lhe mandar esta carta pelos meios normais, Dr. Magno, já que o senhor agora vive na dimensão espiritual, torno-a pública também, buscando na sua divulgação o mesmo impacto pretendido pelo nosso querido autor de "Deus, o grande mito".  

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