TEXTOS DO AUTOR

A INSÔNIA DE RAIMUNDO E OS VENENOS QUE CURAM

Raimundo não desiste — acha que tem direito de dormir, como todos os mortais.

Raimundo luta há quinze anos com o fato de dormir mal. A isso também se dá o nome de insônia. Os remédios alopáticos sempre produziram efeitos contrários no rapaz. Efeitos paradoxais, do tipo rebote. Detalhar isso daria um livro. Quanto aos remédios caseiros, Raimundo já provou todos os sugeridos pelos amigos e parentes — como sabem, todo mundo entende um pouquinho de insônia. Raiz de alface, leitinho e banho morno, contar carneirinhos, chá de camomila, erva-cidreira, língua-de-vaca na testa, música suave, nada de chocolate, café nem se fala, casca do mulungu, sementes de endro, água de cebola, flor de tangerina, casca de maçã, maracujá, e por aí vai.

Houve quem dissesse a Raimundo que ele deveria observar o comportamento de um gato, na sua forma descontraída, relaxada, de encarar a vida. Como Raimundo nunca teve gato, resolveu observar o gato do vizinho. Desequilibrou-se quando subiu no muro, o que lhe rendeu uma costela quebrada e um joelho roxo.

Maçã envenenada da bruxa

Quando Raimundo dorme, lá pelas cinco da manhã, o sacrifício de estar no trabalho na hora certa deixa de ser sacrifício e passa a holocausto. Óbvio que tem olheiras. Mulher geralmente cobre olheira com maquiagem. Já as olheiras de quati em homem são indisfarçáveis. Bocejo também é coisa indissimulável. O chato disso é que sempre dá a impressão de que o bocejador está entediado com as pessoas ao seu redor, com o ambiente. Que constrangimento! Há bocejos que de tão longos e intensos fazem doer a articulação do maxilar.

Quando leu sobre incômodos produzidos por vestuário, Raimundo passou a dormir nu. Durante dois meses dormiu sem roupa, até o dia em que, ao toque da campainha, atendeu um grupo de evangélicas do jeito que veio ao mundo. A cena foi tão marcante que ele voltou ao velho pijama.

Raimundo já trocou o colchão várias vezes, sem grande êxito no seu propósito de dormir. Já se proibiu comer alimentos pesados à noite, já entupiu os ouvidos com silicone para isolar-se dos ruídos. Tais alternativas combinadas resultaram em acordar com muita fome e perder o horário de trabalho, já que não ouviu o despertador.

Raimundo sempre foi um fracasso nas tentativas de fazer exercícios respiratórios. Aprendeu que o ideal, para uma pessoa em repouso, é realizar dezoito movimentos respiratórios por minuto. Nem isso deu certo, já que ficava de olho no relógio a noite inteira. Ao perceber que não ia dar dezoito, ele, esperto e desperto, recomeçava a contagem.

Quando o nosso herói leu sobre a interferência da luz no sono, ficou impressionado com o que aprendeu — a generosidade e a sabedoria da Natureza, de reservar a noite, com sua ausência de luz, para o repouso. Depois que o homem inventou a lâmpada, isso deu uma guinada boa, com o ato de a noite virar dia, trazendo muitos estímulos visuais em horas que seriam próprias para as pupilas estarem descontraídas... E Raimundo fez um pacto consigo mesmo. Depois de se deitar, nada de luz acesa, mesmo que precisasse se levantar.

Foi muito desgastante para toda a família. Na noite de estreia, Raimundo chegou a comer sabão em vez de margarina, maltratou as canelas na mesa da sala e, o pior, fez xixi fora do vaso.

Na última que se sabe do Raimundo, ele foi fundo no assunto dos remédios homeopáticos que andou experimentando. Arsenicum album, o nome já diz tudo — arsênico, ácido, agente desfolhante, esterilizante de solo, inseticida, usado em tingimento, mineral venenoso... Já o noz-vômica, este não fica atrás — estricnina, usado para exterminar roedores, pesticida, mesmo que sumagre-venenoso...

Sinceramente falando, Raimundo jamais deveria ter feito pesquisa na internet sobre os medicamentos, já que, impressionável como é, só de pensar nas definições passou a dormir menos do que o pouco que dormia. E o golpe mortal para ele foi a descoberta de que os índios sul-americanos usavam estricnina extraída de plantas para envenenar setas. Saber que o veneno inibe a transmissão neuromuscular e causa morte por asfixia deixou Raimundo aturdido.

Não adiantou dizer e reprisar a ele que essa questão não pode ser analisada de forma simplória. Há venenos, vegetais, minerais, animais, que curam em vez de matar, ao serem modificados em laboratório, ou aplicados em doses diferentes. A grande diferença está na dose. Paracelsus (1493-1541) foi além — disse que todas as substâncias são venenos e que somente a dose correta diferencia o veneno do remédio.

Que nada, quem disse que Raimundo refletiu sobre isso! Andou é tendo pesadelos. Num deles, aliás recorrente, sonhou que estava no inferno, aquele local tão alardeado pelos sacerdotes mal informados. O departamento em que estava parecia Teresina, Goiânia, Cuiabá, de tão quente. Quem coordenava a turma era nada mais nada menos que a bruxa que envenenou Branca de Neve com aquela enorme e apetitosa maçã. Em prateleiras vermelhas cheias de musgo, todas as marcas de cigarro que já existiram, Fulgor, Beverly, Continental, Mistura Fina, já que a regra era envenenar o ambiente. Numa das prateleiras, até coca-cola havia, em várias embalagens, não porque fosse veneno, como os outros — embora muitos digam que sim —, mas porque a Coca-Cola está em todas, por uma questão de marketing.

Os tridentes que os diabinhos usavam eram venenosos. Suas pontas fulgentes e quentes continham uma mistura sabem de quê? Arsênico e estricnina. E os capetas, todos sem exceção, tinham a cara do seu médico homeopata.

A essa altura, falando sério, não é qualquer um que vai convencer Raimundo de que as coisas não são bem assim. Acho que Raimundo está mesmo endiabrado. E precisa, sem sombra de dúvida, é de exorcismo!

Aristides Coelho Neto, 13 mar. 2011

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