TEXTOS DO AUTOR

FISCALIZAÇÃO, ACESSIBILIDADE E ALZHEIMER

A questão da acessibilidade em calçadas do Distrito Federal e a impotência (e às vezes incompetência) dos órgãos fiscalizadores, no que se inclui a AGEFIS. E as ações esquecidas.

Quem não gostaria de resolver definitivamente as questões de acessibilidade? principalmente em calçadas? Bem, são muitos os locais do Distrito Federal que nem têm calçadas. Imagina-se — as pessoas de fora de Brasília — que a capital da República são apenas ruas largas, catedral, torre de tevê, palácios. Mal se sabe que Brasília tem muitas outras mazelas além das que nos trazem os “habitantes” do Congresso... Mazelas talvez até mais gritantes que em outros locais deste imenso Brasil desigual.

Estamos falando de calçadas desniveladas, fora do padrão, com degraus mortíferos. São elas que obrigam os pedestres a caminhar pela rua e não pelo passeio. Lamentavelmente, muitas vezes o perigo de andar pelo leito da via é menor que o de andar nas calçadas. A estas damos o nome de inacessíveis — as que sujeitam pessoas portadoras de alguma deficiência (passageira ou definitiva) a se acidentarem. Prejuízo para a saúde pública, prejuízo para os planos de saúde, para a sociedade, enfim.

Pra início de conversa, melhor seria que o Estado assumisse a construção das calçadas. E fim. Não deixasse a coisa pública à mercê de particulares, para depois querer intrometer-se no que deveria ter sido de sua exclusiva competência.

Você, leitor, poderia perguntar — e onde está a fiscalização? Respondo. Está por aí, “apagando incêndios”, às vezes perplexa diante da velocidade com que o ilícito supera a capacidade de fiscalizar. Engessada por mil problemas. Assistindo a condomínios irregulares avançar sobre áreas de preservação, com o escudo das liminares. Padecendo limitações operacionais. Quem consultar o relatório 034867 na AGEFIS — Agência de Fiscalização do Distrito Federal vai deparar com a impotência do Estado diante de casa na QL 26 com sauna imensa e piscina em área pública, e ainda parte da edificação em afastamento obrigatório (non aedificandi), em que o Estado deixa patente não ter preparo para demolir. Sem contar a batalha campal dos operários dessa fatídica obra, que em outros tempos, com pedras e paus,  avançaram sobre agentes da fiscalização e do então Siv-Solo.  Há espertinhos no Lago Norte (classe esclarecida) que construíram sua casa inteira na área pública — que é minha e sua — para preservar o lote escriturado como investimento futuro. Há um restaurante no Lago Norte, chamado Comer & Comer, em que a proprietária, sem cerimônia, juntou três quiosques da mesma família (não perguntem como nem por que conseguem três quiosques contíguos para a mesma família) e erigiu restaurante de 400 m² na área pública. Como se não bastasse, incorporou mais uma área verde (pública) limítrofe à sua residência, onde construiu depósitos, cozinha, vestiários em outros mais 600 m² de área também pública, criando um complexo gastronômico de 1.000 m² nas barbas do Estado e sem autorização deste. E tudo cai no esquecimento, porque a AGEFIS literalmente apaga incêndios, derruba alguns barracos, algumas cercas, apreende alguns materiais. E usa o recurso de esquecer, simulando o Mal de Alzheimer. No pouco que faz é criticada, na maioria das vezes porque a sociedade acha que extrapola. No muito que deveria fazer e não faz, também é criticada, pelo seu poder de fogo limitado, efêmero. E criticada pela omissão inconteste, por variados motivos. Estamos diante de um barco fazendo água com um montão de furos. E a AGEFIS, no caso da fiscalização do Distrito Federal, com seus dez dedos, tentando estancar a água que entra por vinte, trinta, cada vez mais, furos.

Vamos nos ater às nossas calçadas. A legislação se aprimora a cada dia, no intuito de preservar o direito e a qualidade de vida das pessoas com algum tipo de deficiência. Quando nós da AGEFIS vistoriamos uma edificação com vistas à obtenção de carta de habite-se, incluímos as calçadas nas exigências. Até aí tudo bem. No entanto, em 99% dos casos, em Brasília, tais calçadas estão inseridas num contexto esdrúxulo de irregularidades da vizinhança.  Vide calçadas dos bairros Lago Norte e Lago Sul. Nem falar dos comércios da Asa Norte, do Paranoá etc. Degraus, obstáculos, rampas perigosas, um triatlo urbano. E sobretudo largura inadequada nos caminhos de pedestres e/ou de cadeirantes. Nem falar da ganância dos moradores em esticar o seu domínio, a ponto de espremer os pedestres. E chegamos nós da AGEFIS exigindo que a calçada do pretendente a carta de habite-se seja perfeita. Falta perceber que com isso se cria uma ilha de excelência num mar de irregularidades. Porque um cadeirante fica limitado à calçada recém-vistoriada. Nesse segmento de calçada ali ficará estático. Não consegue chegar a lugar nenhum. Mas nossos dirigentes da hora justificam — alguém, em algum momento, deve começar a botar as coisas nos eixos. Não percebem que nem sempre o raciocínio cartesiano soluciona questões em que o buraco é mais embaixo, como se diz vulgarmente.

Em época de “programações fiscais” e de “auditorias urbanísticas” na AGEFIS, em que se pretende tratar as irregularidades edilícias e de uso do território com mais isonomia — mas que passa por recrudescer a depauperada área de planejamento da fiscalização —, tenho uma excelente sugestão de programação fiscal para a AGEFIS. Melhor, tenho duas sugestões.

A primeira — dar continuidade a todas as ações fiscalizatórias paralisadas pelos mais variados e incríveis motivos. Ou seja, combater o Alzheimer fiscalizatório.

A segunda — fazer valer a implantação de acessibilidade nas calçadas por etapas. A AGEFIS entraria num conjunto do Lago Sul (ou Norte), por exemplo, e intimaria todos os moradores a demolirem edificações erigidas em áreas non aedificandi. Intimaria todos a recuar suas cercas aos limites legais, pelo menos na área contígua às calçadas. Levaria em conta o problema das cotas de soleira fornecidas pelo Poder Público, discrepantes, comumente, em relação ao nível real do meio-fio (que é o das calçadas). Vencidas as batalhas jurídicas (que serão muitas), implantaria as calçadas dos sonhos nossos de cada dia. Contínuas. Niveladas. Perfeitas! Como todos nós merecemos.

Essas irregularidades do passado com calçadas trazem um panorama confuso. E difícil de consertar. A AGEFIS, no caso, se torna poderosa apenas nessa situação específica — em que barra a emissão de uma carta de habite-se até que uma calçada esteja de acordo com a legislação. O Poder Público é totalmente impotente para fazer valer a lei em casos já consolidados, ou seja, ilícitos que têm raízes no passado. Claro, impotente também diante dos poderosos. 

A AGEFIS, na gestão Rollemberg, fala muito em esquecer o passado. Aliás, sepultou casos como o relatado há cinco parágrafos atrás. E enterrou milhares de outros. Fala muito em olhos no futuro, a despeito desse presente nebuloso que vivemos no Distrito Federal. Julga ser melhor neutralizar ações que denunciem a falta de continuidade. E propõe começar do zero. Será que os novos dirigentes acham que isso melhora a autoestima dos fiscais? E atende aos interesses da sociedade? Não sei. Esquecem-se de que não é possível passar uma borracha no passado. Os erros, malfeitos e omissões do passado devem ser analisados com esmero, para as devidas correções de rumo. Sepultar tudo, ou jogar para baixo do tapete, não é conveniente. Sem contar que tanto as definições de prioridades quanto às de inumação de ações obedecem a um processo seletivo. Quem decide? Podem crer, nem sempre é a pessoa ideal para isso. Quando é um político quem decide, a situação fica bem pior.

Pois é, a gente acaba enveredando por meditar sobre como selecionar nossos dirigentes. Como se eles não fossem indicados, mas eleitos.   

Tudo nos leva a crer que quem tem poder decisório deveria ter determinadas qualidades. Não ter vaidades, ser sensível aos problemas alheios. Saber discernir criteriosamente o que é particular e o que é público, olhar mais para a sociedade que para seu umbigo. Se for bipolar (aquele que vai da depressão à euforia em poucos minutos), estar em tratamento. Ter um mínimo de polidez, ter lisura, ser sábio em vez de só inteligente. Procurar evitar a cegueira intelectual, não ser maldoso, nem invejoso, nem megalomaníaco. Ter jogo de cintura, sem abdicar de princípios éticos e morais. Entender as diferenças. Enxergar longe.

Claro que ninguém acumula tantas qualidades de uma só vez. E as instituições são um reflexo das personalidades, daí o seu poder efêmero. Isso pode nos levar à descrença, claro. Acessibilidade foi só uma desculpa para este texto. E tem gente que vai achar isto uma grande fofoca.

Aristides Coelho Neto, 16 de julho de 2015

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