Aquela sexta-feira, 17 de março de 2006, prometia. A cidade de Paracatu me surpreendera com o visual das ruas estreitas, da arte requintada do interior das igrejas e dos casarios da época da exploração do ouro. A Casa da Cultura empolgava em todos os detalhes. À solenidade comparecera muita gente. Os nomes de Oswaldo Costa, o autor de Orapronóbis, e de dona Zezé, esposa e companheira havia 62 anos, já tinham sido declinados para tomar lugar. Ao seu lado, acadêmicos das letras, representantes do executivo e legislativo municipais e da loja maçônica. Historiadores e outras autoridades não se achegaram por problemas de lugar à mesa. E eu imaginava ainda o que seria a encenação-surpresa de Orapronóbis – era muita gente se movimentando pelos bastidores do andar inferior, lá onde a gente cruzava com o poço nostálgico do pátio. Lá, segundo alguns, os escravos se amontoaram em tempos que já se vão. Aquele prédio era testemunha da história de Paracatu – senzala, câmara municipal, grupo escolar, agora uma repositório de obras de arte e acontecimentos, em uma cidade que já havia sido comparada a Atenas. Os pilares de aroeira, eu os comparava a Oswaldo Costa, nos seus 87 anos, que teria de ser mais firme ainda para não sucumbir a tanta emoção.
A partir do terceiro orador a quem fora concedida a palavra, comecei a me preocupar em o que dizer se fosse chamado para tal. E fiquei imaginando uma fala de improviso.
Diria, quem sabe, que eu era de Brasília, arquiteto de dia e revisor de noite. Velho chavão. Valeria a pena dizer isso? Enfim... Que fora convidado a fazer a revisão textual de Orapronóbis, que revisor era um chato, e que Oswaldo Costa havia sido paciente comigo... E que eu ganhara um amigo.
Para ilustrar a chatice de revisor, quem sabe, dizer que na estrada, já perto de Paracatu eu observara placas com Paracatu e placas com Paracatú (com acento). E que ficara em dúvida sobre em qual Paracatu entrar. Se a platéia iria rir? Uma incógnita. Sempre pode acontecer de ninguém achar graça. E quem fez a placa poderia estar lá.
Falaria então das aventuras e das surpresas de última hora no processo de preparação e impressão do livro. E tentaria me safar do caso de Anápolis com dois acentos, logo na página três. Relataria que o diagramador havia me ligado apresentando sua última dúvida –: seria Brasília ou Anápolis no pé da página? E eu ligara imediatamente para Oswaldo em Anápolis. E ele preferira Anápolis. E assim foi. Só que o diagramador tascou por sua própria conta dois acentos em Anápolis. Assim: Anápolís. E que ao notar a gafe no livro impresso, lamentei de forma visível. “Cara! dois acentos, onde você arrumou isso?” E que ele, espirituoso – não adiantava chorar o leite derramado – viera com a gracinha: “Ônibus, quantos acentos tem?”. Eu disse: “Um só”. E ele emendou: “Pois há ônibus que tem mais de trinta e seis assentos...”. E que eu tive de fingir que gostei da piada... Para garantir a descontração da platéia quanto aos trinta e seis, talvez fosse melhor eu fazer gestos pontuais com a mão quanto ao montão de assentos, que não acentos.
Bem, isso seria apenas uma preparação.
A seguir, talvez eu dissesse que Oswaldo Costa não era um escritor até o lançamento que acontecia naquele instante. A intenção seria criar suspense, expectativa... E tentaria explicar. Pior se antes de explicar, alguém da família, irritado com a deselegância, me jogasse alguma coisa sólida.
E eu contaria o caso do incêndio do Ministério da Habitação, na W3 Norte, em Brasília, onde eu trabalhava na década de oitenta em projeto da ONU. O prédio queimara em vinte minutos apenas. Perdêramos toda a nossa produção impressa. E todos os vídeos que produzíramos. Ficamos absolutamente sem nada. Nos meses que se seguiram à tragédia, conseguimos pouco a pouco muita coisa de volta. Nem tudo, porém – só conseguimos o que havíamos passado a outrem. Só tivemos de volta o que havíamos compartilhado com as pessoas. Acho que só são realmente nossas as coisas que dividimos com os outros... Só temos aquilo que damos. Seria interessante essa linha para o público presente? Um escritor só se consagra escritor quando compartilha seu pensamento com alguém. E compartilhar com um só não conta. É pouco. Se temos algo de bom a passar, não podemos guardar os talentos, aludindo à passagem do Evangelho... E o auge do compartilhamento é a obra impressa. Há tanta gente que apresenta dificuldades para expor suas idéias!... Quando as identifica na lavra de um escritor, suspira aliviado e diz: é isso que eu gostaria de dizer! bendito escritor!
O parto de Orapronóbis aconteceu em dezembro de 2005. Criança parida, o primeiro choro, o choro da vida, acontece agora. E a criança está sendo acolhida carinhosamente por muitas e muitas mãos amigas paracatuenses. Faltava Paracatu para a consagração. Paracatu é o berço de todas as reminiscências do autor. Paracatu dos queijos e quitandas, do palavreado fluente e gostoso dos mineiros, das catiras e tapuiadas e tantas riquezas mais. Aquele dia era então o dia glorioso do repartir-o-pão do saber, eu diria à platéia. Na platéia seleta, expectativa ou enfado? Quem poderia dizer...
Agora sim! Oswaldo era escritor. E justamente na casa que o abrigara nos vários momentos de sua trajetória, compartilhava totalmente o fruto da sua mente privilegiada e de seu coração inflado de amor pela sua terra. Se você é um formador de opinião, você é responsável por levar às pessoas coisas que ensejem crescimento moral, ético e cultural, fortalecimento, auto-estima, pensamentos positivos, sentimentos elevados. O dom da palavra há de ser usado para construir. O planeta precisa disso, em meio a tanta miséria moral. Orapronóbis é construção histórico-cultural pura, impregnada de rico repertório lexical, revestido da sensibilidade do autor e do seu amor profundo às suas raízes. Traz enlevo e acrescenta.
Ah! quem sabe um grand finale – fazer uma denúncia. Novo suspense! Denunciaria em público que Oswaldo Costa estaria escondendo coisas. Escondendo outras obras, tímido em publicá-las.
Hmmm... essa linha de raciocínio... sei não, sei não...
De tudo, na dúvida, melhor mesmo seria simplesmente ler o texto que escrevi para a orelha de Orapronóbis, e que não foi de improviso. Acho que lê-lo garantiria um melhor impacto do que estas divagações. E os exemplares estariam ali, na mão dos leitores. Fácil acesso, só pedir um emprestado.
Interagindo prazerosamente com o autor, esmiucei Orapronóbis, matutando, relendo, absorvendo. E aprendendo. Critiquei e sugeri, como se a obra também fosse minha. Algo além da nossa vã filosofia, alguém diria. As partes mais áridas, próprias da formação e da cultura do autor, me soaram às vezes como clarins. E as aplaudi. Outras soaram como exímia percussão. E as respeitei.
Mas, apenas leitor, me emocionei com a prosa impregnada de poesia rebuscada e fértil. E reli muitos trechos, movido não mais pelo dever de revisar, mas por um prazer intenso, olhos turvos de lágrimas, como se presente por exemplo ao encontro emocionante de Nezinho e Urias no ribeirão lajeado e ermo, ou vivendo os devaneios do amado de Nora, que só desejava ‘voltasse ela aos seus olhos’. As palavras então de Oswaldo Costa me tocaram como se fossem violinos.
Mas outros sons a leitura de Orapronóbis nos traz. Não os distingui, porém, pela minha incompetência. São celestiais, acima da minha compreensão.
Observaria mais uma vez a platéia. Se eu sentisse a preleção insossa, tiraria do bolso a poesia “Quem Escreve”, de Carmen Cinira. Pena que não estivesse comigo. É assim que Carmen se expressa:
QUEM ESCREVE
Quem escreve no mundo
É como quem semeia
Sobre o solo fecundo...
A inteligência brilha sempre cheia
De possibilidades infinitas.
Planta
Uma idéia qualquer onde te agitas,
Semeia essa idéia pecadora ou santa,
E vê-la-ás, a todos extensiva,
Multiplicar-se milagrosa e viva.
Sem tanger as feridas e as arestas,
Conduze com cuidado
A pena pequenina em que te manifestas!
Foge à volúpia das maldades nuas,
Não condenes, não firas, não destruas...
Porque o verbo falado
Muita vez é disperso
Pelo vento que flui da Fonte do Universo.
Mas a palavra escrita
Guarda a força infinita,
Que traz resposta a toda a sementeira,
Em frutos de beleza e de alegria
Ou de mágoa sombria,
Para os caminhos de uma vida inteira.
Carmen Cinira
(GAMA, Ramiro. Lindos casos de Chico Xavier. São Paulo: Lake, 1981. 12. ed., p. 103)
Parabéns, Oswaldo Costa! A força infinita de Orapronóbis nos diz que o autor agora tem o corpo fechado, por ter a mente aberta. É imortal, e paira acima de quaisquer materialidades. E parabéns também a Paracatu, a quem agradeço o carinho.
Aristides Coelho Neto (revisor do livro Orapronóbis – Brasília, 17.3.2006)
________________________________
O texto original de 17.3.2006, que se encontra neste link, sofreu pequenas adaptações em 4.1.2009.
Comentários (3)