TEXTOS DO AUTOR

ZÉ PEDRO, O DEBOCHADO

Êta moleque danado, esse rapaz de invencionices mirabolantes.

Naquela escola pública do interior, os adolescentes que cursavam o segundo grau, ávidos de um dia conseguirem ingressar na faculdade, não perdiam tempo em trazer termos que apareciam em todo tipo de mídia que circulasse pela cidade.  Motivo para debates frutíferos. Isso, diga-se de passagem, muito tempo antes da internet.

A mestra de filosofia passava um cortado às vezes com Zé Pedro. O compridão de cabelo ruivo repartido, óculos arredondados, camisa xadrez, colarinho abotoado e kichute 42, dava um baile na professora de conhecimentos gerais também. A maioria dos jovens queria mesmo é aprender. Talvez Zé Pedro também quisesse, mas era por demais criativo nas interpretações de frases, termos ainda não dicionarizados, gírias, expressões idiomáticas, locuções — hoje chamadas de forma chiquérrima de sintagmas — e quaisquer frases bem-feitas ou não que inundavam as ruas da pacata cidade, as instituições e por aí vai. Quem mais sofria mesmo era a professora Maria Clara, de português.

As observações de Zé Pedro geralmente faziam rir, mas às vezes eram de fazer perder a paciência de qualquer mortal da pedagogia. Principalmente porque o rapaz usava de uma austeridade fake, travestida de deboche. Tudo com ar solene, autêntico wise guy. Imaginem ele contradizer a professora quanto à origem da expressão manjar dos deuses... Dizer que nunca foi provado que no Olimpo comiam sempre manjar. Preferiam churrasco, os deuses.

Certa vez — o tema era doação de sangue e tatuagem —, a dúvida era se tatuados podiam doar sangue. Ao contrário do que muitos pensam, o tatuado pode doar sangue se a última tatuagem tiver mais de um ano. Quando a professora explicou o que era grupo de risco, Zé Pedro não perdeu a chance. Disse que grupo de risco para ele era outra coisa. "Crianças que eventualmente resolvem riscar as paredes com lápis cera ou lápis de cor integram um grupo de risco."  A professora Maria Clara ia argumentar mas desistiu.

Em outra oportunidade, a dúvida era quanto o uso de "o mesmo, a mesma" em lugar de pronome ou substantivo. Melhor se evitasse. A frase trazida pelos alunos era "As alunas deverão entrar na escola com saia ao nível do joelho. Não sendo assim as mesmas levarão advertência".  Mas Zé Pedro coletou uma outra que fez questão de expor: "Antes de entrar no elevador verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar".  Aliás, essa frase não resiste a uma análise minuciosa — dá ensejo a muitos comentários para uma professora de português. Mas, claro, Zé Pedro, não estava preocupado com detalhes. Trouxe prontinha uma interpretação muito particular. Disse que a verificação era muito necessária — o mesmo. Era importante reforçar isso, já que poderia não ser o mesmo elevador. Sendo outro, poderia levar você a lugar que não o pretendido... Dona Maria Clara, enquanto a classe ria, só deu um longo suspiro.

Estávamos muito antes do Novo Acordo Ortográfico, que vigoraria a partir de 2009. Naquele tempo era aceitável a gente criar palavras, como toma-lá-dá-cá, vou-mas-não-vou, leva-e-traz.  E a questão era se o composto goiabada com queijo poderia ser grudado com hífen. Parecia que Zé Pedro estava distante nesse dia. Que nada! Tanto estava atento que não perdeu a chance. Disse que a grafia dependeria da situação — se depois de comer goiabada com queijo a pessoa fosse escovar os dentes logo após, não tinha os tracinhos. Espaços entre palavras e dentes totalmente livres, desobstruídos. Se fosse escovar, aí sim, tinha os traços de união, que serviriam de palitos na ausência de fio dental. E ainda recomendou não escovar, que o sabor da goiabada duraria mais tempo. Pelo absurdo, foi o primeiro dia que a professora Maria Clara esboçou um sorriso leve de condescendência.

Numa sexta-feira, dia de alegria, prenúncio de descanso, foi muito interessante a questão trazida por um aluno sobre o termo "agitação das massas". Maria Clara, muito preparada, falou da origem do termo, falou en passant de Marx e até de Lenin. Quando ela concluiu a brilhante exposição, Zé Pedro falou de dois significados bem seus de agitação das massas — a produção das betoneiras, agitando cimento, areia e brita, e a fabricação de pizza que exigia muita agitação das massas com rolo de madeira.

Nesse dia a desvelada e paciente Maria Clara cobriu os olhos com as mãos, suspirou três vezes, e de mãos postas, elevou o olhar para o alto. Olhar que atravessou o telhado, como a tentar, quem sabe, buscar alívio num mundo extrafísico.

Aristides Coelho Neto, 15 out. 2019

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