TEXTOS DO AUTOR

DIÁLOGO E DIÁGOLO

Texto que antecipa uma impossível inclusão de novo verbete no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa.

Qual a diferença entre diálogo e diágolo? Este último não consta dos dicionários.

Diz o Houaiss que "diálogo" é um substantivo masculino. Pode ser

(1) fala em que há a interação entre dois ou mais indivíduos; colóquio, conversa;  (2) contato e discussão entre duas partes; troca de ideias; (3) conjunto das palavras trocadas pelas personagens de um romance, filme etc.; fala que um autor atribui a cada personagem; (4) obra em forma de conversação, ger. com fins expositivos, explanatórios ou didáticos; (5) composição em que as vozes ou os instrumentos se alternam ou respondem. (6) um dos processos básicos de comunicação e expressão do personagem no teatro; sequência de falas trocadas pelos personagens, que faz a ação dramática caminhar sem a necessidade de um narrador.

Exercitar o diálogo é fundamental. Não tenho muito jeito pra isso. Mas reconheço que preciso aprender. Todo mundo precisa aprender.  A gente às vezes menospreza a oportunidade de resolver algo na base da conversação sadia. Mas é o que funciona melhor. E muitas vezes o olho no olho funciona melhor ainda. E, como tudo na vida, é preciso exercitar.

A Justiça tem investido muito na conciliação e mediação, na solução de conflitos. Uma boa conversa evita muitos dissabores e ações que tomam tempo, dinheiro e neurônios das partes. Uma causa, antes de chegar ao juiz, passa por profissionais que facilitam os acordos, afastando (ou pelo menos tentando afastar) as desinteligências.

Nessa tentativa de exercer o diálogo (e a cidadania) procurei um síndico no Centro de Atividades do Lago Norte para tentar resolver uma questão com ele numa boa (como se diz em linguagem popular muito em moda). Eu havia escangalhado meu para-choque traseiro, já que depois do meio-fio não havia calçada, mas sim quatro tocos de árvore, decepados exatamente em altura crítica, ideal para estragar veículos. Quatro tocos que sumiam em meio ao gramado, por estarem pintados de verde! Quando as rodas traseiras encostassem no meio-fio, seu carro estaria avariado. Troncos mortos, disfarçados de grama, sim, pintados de verde. Aliás, sabiam que é proibido pintar o tronco das árvores? afixar cartazes e faixas nas árvores?

Foi só falar com o síndico, de forma suave e, em uma semana, os tocos estavam retirados, surgindo uma estratégica calçada em seu lugar — diálogo bem-sucedido...

Estávamos num restaurante de comida árabe muito conhecido em Brasília desde 1966. É tradição nesse bar da Asa Sul depararmos com gente que traz panfletos de eventos culturais às mesas, drag queen que vende bombom etc., muita figura exótica.  Chegou à nossa mesa uma senhora sofrida vendendo paçoquinha. Eu não tinha dinheiro em espécie. Pedi ao garçom para falar com o caixa. Eu pegaria R$ 12 com ele, e ele me cobraria R$ 14 na nota, a ser paga por mim com cartão de débito. Comissão do cartão muito bem paga, por sinal — diálogo malsucedido.

Tive de me reportar ao dono no dia seguinte. Ele não se conformou com o "desempenho" do caixa. Queria que eu tomasse um chope, que comesse um quibe. Era a forma de ele se retratar. Não adiantou minha negativa — ao saber que minha esposa estava me esperando no carro, me fez sair de lá com dois quibes... Uma forma de desculpar-se pela falta de tato do funcionário — diálogo bem-sucedido.

O piscineiro de Jorge ficou sem dar manutenção à sua [do Jorge] piscina por três semanas. Justificou que, por estar com carro emprestado,  estava dando prioridade às piscinas grandes. A de Jorge tem 21 m² a um preço de R$ 140. A piscina grande de que ele falava tem área quatro vezes maior que a de Jorge. E não ao preço de quatro vezes mais, mas sim a um preço de R$ 190. Fácil perceber que a piscina pequena é que dava mais lucro ao piscineiro (bom lembrar, disse alguém, que regra de três é a única coisa que serve para toda a vida no campo das ciências exatas). Não sabemos se o mantenedor de piscina percebeu seu erro de cálculo, numa decisão equivocada de prioridade... Mas meu amigo não quis saber. Trocou de piscineiro. Há momentos em que não cabe diálogo — diálogo inexistente e impossível por opção. Quase um diágolo.

Houve um caso muito interessante na semana passada. Num estacionamento havia uma árvore muito bonita e de tronco robusto (por sinal, uma buganvília ou primavera pode virar árvore). Dei ré para estacionar. Vislumbrando o caule pelo retrovisor, arrebentei a lanterna do carro. Desse caule consistente, derivava outro, cortado, abaixo da linha de visão de qualquer motorista.

Estava numa instituição católica. Falei com o padre José. Mostrei a ele aquela inconveniente derivação que estragava veículos. Dei a ideia de uso de uma motosserra. Ele aquiesceu e disse tentaria procurar alguém para cortar.  Passados três dias, voltei a falar com o padre José, mas ele não se lembrava mais da motosserra. Perguntei se eu mesmo poderia cortar o tronco incômodo e perigoso que apontava para o céu em 45 graus. 

Foi o que eu e meu vizinho Jaci, com sua supermotosserra elétrica, fizemos — decepamos a derivação facínora — diálogo vago, mas funcionou

Alguns vão dizer que falo demais de árvores. Outros podem dizer que misturei as questões diálogo e cidadania e botânica...

Outros mais estarão curiosos para saber o que é "diágolo".

Pois bem, "diágolo" seria falta de diálogo; degola das oportunidades de dialogar; o verbete surgiu da junção de "diálogo + degolado".  Datação: maio de 2019.

Exemplo disso é o que está havendo entre Presidência da República, Congresso e Poder Judiciário. Puro diágolo! Há de se convir que dialogar com um é uma coisa  — dialogar com centenas ou milhares, exige arte e habilidade.

Diágolo não está no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa — VOLP. Bem que poderia. Mas não pode.

Aristides Coelho Neto, 28.5.2019

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