TEXTOS DO AUTOR

O SOMBRA SABE

Despedidas, só na hora da aterrissagem mesmo. Assim a gente fica mais tranquilo. Ninguém sabe...

Havia um slogan que precedia o famoso seriado da Rádio Nacional. Antes de começarem as aventuras de "O Sombra", ouvia-se: "Quem sabe o mal que se esconde nos corações humanos?" A resposta vinha logo a seguir: "O Sombra sabe". Uma risada cavernosa fechava a chamada. Pensei que o personagem (The Shadow) fosse do final dos anos 50, mas não. O Sombra é personagem que nasceu no começo dos anos 30 nos Estados Unidos. Se ele sabia mesmo perscrutar a intimidade dos sentimentos? Não se provava. Mas por que não acreditar? Ele sabia dos defeitos das pessoas por causa da faculdade de ficar invisível, que desenvolvera na Índia. Se o mal já existia nos anos 30? Bem, o mal é muito mais antigo do que se pensa. E não queiram vocês ficar invisíveis — ia dar muita confusão.

Essa questão de conseguir vasculhar o íntimo das criaturas à nossa volta é bem delicada. Não há como. Só pessoas dotadas de sensibilidade fora do comum conseguem desvendar os mistérios que se escondem por trás do véu que usamos para dissimular nossos verdadeiros ímpetos, nossa verdadeira face — nossos podres, diriam outros. Porque o que mais temos são esses tais dos podres. Podrem crer, digo, podem crer.

Claro que muitos de vocês vão contestar. Vão dizer que nunca fazem o mal. Que são criaturas exemplares. Sempre dizem (ou dizemos) que não fazem o mal, mas na verdade nunca fazem todo o bem que poderiam. Mas isso é papo pra depois. Alguém pode dizer que o ideal é que fossemos totalmente transparentes. Que nos desnudássemos quanto aos nossos sentimentos, quanto às nossas avaliações e desejos, quanto ao que pensamos, enfim. Não queiram! Não queiram mesmo! Que confusão isso daria! Outro alguém poderia dizer — deixe assim, pois está tudo certo. Melhor ignorar o tal do mal que se esconde por trás da cortina...

Já perceberam que tudo isso é prefácio para introduzir uma questão. O voo da GOL do dia 16 de setembro para o Rio, faltando 35 minutos para a aterrissagem no Santos Dumont, trouxe a mensagem do comandante — "Estamos chegando ao Rio. Agradecemos a preferência. Até a próxima. Espero que venham mais vezes etc." Como ainda faltava muito para a finalização do evento Brasília-Rio, isso dava margem a um montão de conjecturas. Ele estava sendo sincero de que haveria uma próxima? As conjecturas, obviamente, passavam pelas ações do Boko Haram, pelas do Estado Islâmico. Quem não pensa no pior em determinadas situações? É a mídia! Valorizar tudo que acontece de pior no mundo nos deixa assim, com as emoções transtornadas. Estaria o piloto se preparando para saltar pela janela e nos deixar a ver navios? Caramba! Imaginem se fosse chegando em Brasília — como ver navios chegando a Brasília? que nem tem mar?

Será que o piloto não seria fã do alemão Andreas Lubitz? que em março passado aproveitou a saída do comandante para se trancar no cockpit e jogar o avião contra os Alpes? aniquilando 150 pessoas que estavam a bordo? Sei lá. A gente fica pensando em algo semelhante. Fica pensando que não providenciamos ainda o testamento. Se vai doer. Quem sabe o mal que se esconde no coração do chefe do avião da GOL lá naquele lugar misterioso, a tal da cabine? Quem sabe dos seus projetos de chegar ao céu com todas as regalias da Terra? Quem sabe das suas frustrações jamais compartilhadas? Quem sabe das suas crises de abstinência? Afinal, os pilotos são pessoas comuns. Iguaizinhos a nós. Malucos como a maioria de nós. 

O pouso foi excelente. Tudo nos conformes. Mas, cá entre nós, precisava o piloto se despedir daquele jeito? faltando 35 longos minutos para a aterrissagem? Poxa, comandante, pense um pouco nos nossos traumas tão alimentados pela mídia! E reflita. Afinal, ninguém sabe o mal que se esconde nos corações humanos.

Aristides Coelho Neto, 16 set. 2015

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