DESTAQUES

COM LICENÇA, GRACILIANO

Um jeito um tanto diferente de apreciar Vidas Secas. Parece crítica, mas é viagem que — dentre outras coisas — relaciona esse clássico com o futuro incerto que se vislumbra com o desmatamento da Amazônia. E sugere consciência a quem não tem.

Sumiu  meu exemplar de Vidas Secas, aquele clássico de Graciliano Ramos.  Por achar um no sebo, comprei.  E resolvi ler de novo. Mas estou descobrindo manias minhas um pouco bizarras. 

O livro tem anotações a lápis do jeitinho que costumo fazer nas minhas leituras. E elas, não sendo minhas, me atrapalham, ou me levam por caminhos inusitados. Fico tentando imaginar como é o Jorge e a Marjorie das marcas a lápis nessa obra exemplar que tem como personagens Fabiano, Vitória, os filhos inominados, a cachorra Baleia. E de quem seria aquele número de telefone manuscrito que aparece bem na folha de rosto? Na página que fala de gutural, e que o leitor de um tempo ido prometeu procurar no dicionário, fico a pensar se ele entendeu mesmo o que é, e se fez som parecido. Será que descobriu o que é cambaio e aió a tiracolo?  Uia! O homem ficou atrevido! Ao sublinhar o trecho do Graciliano "afastando pedaços de sonho", não é que fez uma proposta pra substituir? Mas que petulância! Ou simplesmente está deixando claro o que entendeu da expressão?  Quando falo de alpendre pros mais novinhos, eles não sabem o que é. Tinha na nossa casa, com colunas enroscadas pintadas de rosa. Graciliano nos traz copiar, que me levou ao dicionário pra concluir que é o tal do alpendre da minha infância.  

Ilustrações de ALDEMIR MARTINS

Vixe! Bolandeira, até eu sublinharia pra procurar no pai dos burros.  Ai ai ai! Bem na página dezessete, não é que há uma anotação de uma placa de carro? e acompanhada de creme? Que vontade de ir ao Detran e saber algo a respeito. Antigamente falavam que curiosidade mata. 

Tudo junto misturado, vem minha falta de foco e minha danada crítica ao porquê na pergunta, assim juntinho... Foi o Graciliano? Foi a editora? Pois é, não soa bem ler um livro desse jeito com ares de revisor. Que bom que aprendi que branco tem o sentido também de patrão e senhor de escravos. E que Graciliano fala em taramela, e eu sempre mexia na tramela da porta enorme de madeira lá no interior.  Não pense que pé de turco tem dedos. É planta, como pé de quipá. Nem sabia que guarda-chuva tem biqueira e castão. Tanto ali no livro se fala de pulgas e lêndeas que é fatal que nos lembremos desse tipo de dificuldade na nossa vivência. É, se você não aprende nada, o livro não é bom. 

Fico em dúvida se deparar com essas esquisitices de anotações velhas e outros bichos tem valência.  Cadê o acento de sinhá? Ufa! Não é que não precisa?  Pior foi aquela última linha do capítulo — sinha Vitória chuta a cachorra, "que se afastou humilhada e com sentimentos revolucionários".  Na mesma hora resolvi mandar mensagem para Clara perguntando se a dela tinha sentimentos revolucionários. Que genial o senso racional e poético de Graciliano de nítida valorização do irracional. Em Vidas Secas cada um pensa de seu jeito, até o cachorro e o papagaio. E Graciliano traduz o pensamento de Baleia e de quem mais precisar. Quem vai saber se é mesmo o pensar dos bichos? Em 1947, Álvaro Lins disse que o capítulo dedicado a Baleia "se acha revestido de uma humanidade talvez maior que a dos seres humanos". O delírio detalhado de Baleia ao final é de mexer com a nossa imaginação de situação incerta e terminal. 

Me impactou o caso do papagaio da família do Fabiano.  Não consegui deixar de relacionar com o episódio do nosso saudoso papagaio Wanderley, assim com w e com y.  Na veterinária, contundido, coitado, a profissional disse que ele precisava de repouso. Hilário! Mas muito mais sério é o caso do papagaio da família de Fabiano. Toda ela tinha vocabulário irrisório — até o bichinho, que só resmungava e latia. Imitar o quê? Havia tão pouco pra imitar... Não foi por isso que ele morreu. E nem foi sacrificado. Morreu de morte desnatural: a seca inclemente, a desnutrição. E foi comido, impedindo que a família morresse de fome.  Não me venham com repreensões com base no politicamente correto de gente não comer louro. Ao autor pode tudo ou quase tudo. Isso é a imagem dura da falta de perspectiva, da severidade do clima, da cena de cinema (na vida real) do deserto cruel que produz miragens. Quando seca a vida, quando seca a alma, até Baleia come papagaio.

É hora de dizer que lá pela metade do livro, o outro leitor de lápis na mão desistiu de anotar. Intimidou-se talvez com idas e vindas ao dicionário. Assustou-se com a tarefa árdua ou envergonhou-se, quem sabe, do seu repertório lexical minguado.  

Tomado das expressões regionais e do léxico do sertanejo, exposto com mestria por Graciliano, peço a vocês não mangarem de mim por ler esse clássico desse jeito sui generis. Atrapalhado talvez. Como é rico o vocabulário de Graciliano, como era minguado o dos seus personagens de Vidas Secas. Conversa "não era propriamente conversa, eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências. Às vezes uma interjeição gutural dava energia ao discurso ambíguo". Que bom que a gente aqui da cidade, dos estudos, da fartura e de outros tempos que não 1938, tenhamos recursos tão grandes de expressão. Temos fartura até de léxico. Temos até onde buscar rapidamente penduricalhos pra enfeitar os nossos textos. Quanto privilégio! A gente poder escrever sem nenhum vestígio da fala dura e rouca entrecortada de silêncios de Fabiano. Um vê o texto do outro com a rapidez do raio por meio dessa danada da internet. Uns veem, outros até leem.

Está na hora de terminar esta viagem rápida, com olhos no drama de Vidas Secas

Acho que temos de voltar à época em que foi publicada a obra de Graciliano Ramos. Passaram-se mais de oitenta anos... É muita gente neste país ainda "mordida pelas pulgas, conjecturando misérias". Permanece em nossos dias o quadro de Vidas Secas — "a fome, a sede, as fadigas imensas das retiradas", em dias difíceis, daqueles de que as aves de arribação dão sinais. Fabiano pensava, coitado, que elas, as aves, eram causa, mas eram efeito da desgraça que se avizinhava. 

Nessa região do Brasil tão lesada pelo clima já deveria ter erradicadas a seca e a miséria. Mas o mote das dificuldades dos nordestinos tem servido, na maioria das vezes, para locupletar governantes e políticos desonestos, movidos pelo egoísmo. E o êxodo rural continua, muitas vezes deixando o retirante em condições subumanas, como se não bastasse.  

Um sonho bem racional de Fabiano no último capítulo foi de vislumbrar um futuro quase inatingível de "os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias". A afirmação pode parecer rude e simplória, mas é cheia de sabedoria. Depreende-se que nossos representantes deveriam ter coisas no miolo suficientes para políticas públicas racionais e bem planejadas. Um combate responsável e humano à seca, à fome, a obrigação constitucional cumprida de acesso à educação, ao emprego, à segurança, à saúde.  Encher a vida de todos os brasileiros de esperança. E consciência suficiente para que o desmatamento em curso não transforme o país todo no cenário triste de Vidas Secas

Aristides Coelho Neto, 11 mar. 2023

Comentários (3)

Voltar