TEXTOS DO AUTOR

O BANHO DE ALCEU

Zulmira, a irmã mais velha de Alceu, chegou a proibi-lo de tomar banho de manhã.

Alceu até que tinha bom humor. Apresentava-se como "Alceu dispor". Era influência do Dácio, que se apresentava "Dácio um jeito". Uma das coisas que Alceu mais gostava era tomar banho. E gosta ainda. A gente chegou a essa conclusão pelo tempo que ele passava no banheiro, pela expressão de ansiedade ao entrar e de felicidade ao sair. E como no banheiro ele se esquecia do mundo, acabou por perder vários empregos. Não conseguia chegar no horário.

Zulmira, a irmã mais velha, viúva, chegou a proibi-lo de tomar banho de manhã. Como só havia um banheiro no apartamento, até que essa medida solucionou o congestionamento no corredor. Pior era conciliar a saída dos sobrinhos para a escola à tarde, com aquela porta sempre fechada. Mas isso funcionou por pouco tempo. À noite, ávido por tirar o atraso, Alceu se demorava mais ainda naqueles banhos intermináveis.

Celina, a irmã que tinha ideia pra tudo, solteirona como Alceu, certa vez simulou um banho pra ele. Definiu com ele por onde começaria. De comum acordo, tentaram conceber passo a passo o que seria um banho racional. E econômico, já que a conta de energia não era barata. Obviamente, nunca começar de baixo para cima. Já Zulmira, certa vez, deduziu que era TOC — o tal do transtorno obsessivo-compulsivo. Ouvira falar de caso em que a pessoa só saía do banho quando acabava o sabonete. Por isso, media diariamente o sabonete de Alceu. Quem sabe detectar alguma irregularidade. E pedia a Deus: se fosse TOC, que fosse igual ao do Roberto Carlos.

As duas irmãs chegaram a pensar que Alceu enveredara por traquinagens solitárias além da conta. Durante um mês puseram salitre na comida de Alceu, receita da mulher de um sargento amigo. Nesse período só deixavam Alceu assistir à novela das seis, que tinha menos erotismo. Difícil mesmo seria deixar o Alceu sozinho com seu banho quando viajassem para o casamento de Benê, o caçula. Mas não havia jeito. Combinaram que todos seguiriam de ônibus na sexta. Só o Alceu iria no sábado à tarde, e de avião. Porque tinha uma entrevista de emprego nesse dia, logo de manhã.

Chegado o sábado da esperada entrevista, todos então já haviam partido. Zulmira e Celina, mãezonas, deixaram a mala de Alceu prontinha. Ao chegar da entrevista, só restava ao Alceu tomar o famigerado banho. Concentrado no plano de Celina, começou pelo topo. O resto era o trivial. Xampu, condicionador, xampu johnson nas pálpebras. Sabonete phebo no rosto, pescoço, ombros, braço, peito e costas. Escova comprida nas costas. Na frente, eucerin. Nos fundos, sabonete neutro.

Pernas, joelhos e pés, de novo o phebo. E repetiu os procedimentos com zelo de um piloto antes da decolagem. Desligou a água. Enxugou-se. Aproveitou a unha amolecida e usou o cortador, principalmente nos pés. Aos dedos deu mais atenção por causa da frieira. Penteou os cabelos, passou gel. Nessa hora bateu nostalgia, lembrou do gumex, que preparava ele mesmo jogando o pó no álcool. Fios amaciados na quentura, passou creme, fez a barba. Depois, loção pós-barba.

Escovou os dentes com colgate. Escovou a língua. Gargarejou com malvona, bochechou com listerine. Usou o creme de rosto, depois passou o filtro solar, também o creme para cotovelo, outro para os braços. Nas manchas passou a pomada indicada. Na picada de mosquito usou fenergan. Numa pereba, band-aid. Aplicou a dose de proctyl que o médico prescrevera. Resmungou algo nessa hora. Pingou o colírio antialérgico. Por último passou o desodorante. 

E ainda sobrou a sensação incômoda de que havia esquecido algo. Refez então na memória toda a ritualística. Não descobriu. Sabia que quando menos se espera a coisa aflora. E não é que aflorou? Era a colônia. Desatravancada a etapa anterior, cotonete na orelha. Só faltava agora se vestir.

Nem sei pra que se vestir. Já perdera o avião.

Aristides Coelho Neto, 28 abr. 2013

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