DESTAQUES

DESERTO, PANDEMIA E SEMEADURA

Este texto de Rui Tavares promove reflexões quanto à pandemia. O deserto é alegoria de que lança mão o autor para penetrar os mistérios da alma.

O ponto, pós-fertilização, que inicia a vida é motivo de polêmica e não finalizaria este texto se o deixasse de incluir nesta explanação. No entanto, introjetar a importância individual na participação da vida universal — não da grandiosidade, mas da nossa pequenez — poderá ocorrer em qualquer fase da existência.

O deserto nos dá a exata sensação dessa quase insignificância de nossa presença no Universo. Somos um grãozinho no imenso areal. 

Nascemos como um deserto fértil, que poderá frutificar caso seja plantado. Após o nascimento somos cuidados e guiados para aprender os segredos desse deserto. Terminado o período de proteção dos pais, precisamos caminhar num emaranhado de trilhas, com sinalização confusa, nos perdendo e nos achando. Quando ocorre uma ventania somos carregados, mudam os horizontes. E nossas referências serão justamente as sementes que brotaram pelos caminhos.

A sociedade de consumo passa a falsa ilusão de que escalar uma posição de destaque, deixar de ser grão e se tornar torrão, agregaria mais importância à nossa individualidade. A pandemia é um tornado que transformou a humanidade em único e grande deserto. Em meio à tempestade de areia, caminhando cegos, vamos tateando nossa semeadura.

Em nosso deserto pessoal as placas de sinalização estão todas turvas. Somos fustigados por milhões de grãos se agitando e não sabemos onde iremos parar e nem quem restará ao nosso lado. Aqueles que não semearam estão perdidos, isolados na solidão do deserto afetivo. 

Com as frequentes perdas de familiares e amigos de longa data, a pandemia torna a vida mais árida. Adultos experientes vivendo a pequenez do deserto e a insegurança angustiante do caminhar sem rumo.

Nas redes sociais o que mais vemos são manifestações sobre a falta que todos sentem dos abraços, mesmo aqueles que nem se abraçavam. É a eterna busca das referências, dos apoios. Poucos prepararam seu deserto pessoal para ser um local aprazível — esqueceram que o envelhecimento é o inexorável caminho de volta à nossa individualidade. A solidão existirá onde não foi feita a semeadura.

Rui Tavares

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Rui Tavares, escritor — hoje analisando desertos do corpo e da alma — é médico brasileiro nascido em Guaraçaí-SP. Viveu seus melhores anos de adolescente em Penápolis, cidade à qual é eternamente grato. Atuou em pediatria em Brasília por 36 anos. Mora em Perúgia, comuna italiana, capital da região da Úmbria, Itália. 

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