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A SAGA DE LAURO CARVALHO

Texto também publicado na revista REFORMADOR (Revista de Espiritismo Cristão) — FEB, Ano 138, nº 2.293, abril 2020, p. 30-33.

"Todas as tarefas do bem são ministérios divinos em que devemos empenhar a vitalidade, sem esmorecimento nem reclamação. [...]  

[...] Jesus é o Grande Servidor Anônimo, a ensinar-nos que a maior honra da vida é o privilégio de ajudar e passar adiante, servindo sempre e sem cansaço. — Joanna de Ângelis (do livro SOS Família, psicografia de Divaldo Franco)

 

No que concerne à história de vida de Lauro Carvalho (1936-2019), as pessoas sempre tiveram vaga ideia das dificuldades por que passou esse destemido divulgador da Doutrina Espírita. Natural de Rio Verde (GO), filho de Pauzanes e Maria Freitas, antes de se radicar em Brasília, penara, de forma significativa, com cobranças cruéis de legião pertinaz de obsessores, que chegaram quase a dominá-lo totalmente. Quando levado em 1960 para o sanatório Eurípedes Barsanulfo, na cidade de Palmelo (GO), lá aportava em péssimas condições espirituais. Nesse hospital espírita conheceu Amélia de Sousa. Enfermeira devotada, presente, corajosa, dedicou-se integralmente à recuperação de Lauro. Esse convívio levou os dois a se casarem tempos depois. Eis assim um resumo simplista do que foi a vida de Lauro. 

Na realidade, o drama de nosso amigo revela-se quase inenarrável. Seu testemunho pessoal foi publicado na Revista Internacional de Espiritismo — RIE (dez. 1983, jan. fev. 1984).  Inspirado nos relatos dos Alcoólicos Anônimos, Lauro concluíra que, ao relatar seus próprios casos, cada um trazia, de alguma maneira, alento e esperança para os vitimados pelo álcool — da mesma forma, julgou que abrir seu coração seria bom para os massacrados pela obsessão. "A dor irmana os homens, eliminando barreiras", afirmava. A apavorante experiência de chegar acorrentado ao posto de atendimento de Palmelo tem certa relação com a obra de André Luiz, na descrição do umbral em Nosso Lar. Gritava dia e noite,  esfregava-se nas paredes ásperas, imolando-se a ponto de ficar em carne viva. Isso o levou ao isolamento preventivo, muitas vezes tolhido para não se ferir mais ainda. Já os "escuros meandros da obsessão", como disse Lauro, são bem ilustrados no livro Libertação, do mesmo autor espiritual

Não pensem que nosso amigo não havia procurado a medicina convencional — foram diagnósticos dos mais desencontrados e estapafúrdios. Por isso, Lauro nunca se esqueceu de que a ignorância da medicina quanto a assuntos de cunho espiritual protelara para ele, em muito, encontrar o endereço certo para o alívio de sua desdita.  O sanatório de Palmelo usava métodos de tratamento somente espirituais. Lauro sempre foi temeroso quanto aos tratamentos psiquiátricos à base da medicação costumeira. Ao falar de seu drama pessoal, usou a expressão "amarrar o paciente por dentro" no que tange à medicação de controle especial. No seu tratamento — com Jerônimo Candinho, Damo, Dionísio, Cecília, Juca Nogueira e outros médiuns —, Lauro chamou o método utilizado para com ele em Palmelo de "amarrar por fora". Permanecera amarrado literalmente em muitas ocasiões. Julgava, pois, tal estratégia necessária e acertada ao seu caso. Nessa linha, diz o amigo no artigo da RIE, na amarra por fora, o paciente "quando sara, sara mesmo", sem os reflexos nocivos da dependência. Nesse ponto, Lauro deixa claro um juízo de valor otimista, mas totalmente seu. Sempre teve consciência, todavia, de que, posteriormente à "cura", muitas vezes seria acometido de crises — desta vez menores —, o que lhe moldou uma personalidade retraída, tímida. Era solitário, circunspecto, avesso a regras de etiqueta, também bondoso, extremamente simples. 

Lauro conta que, no auge do desespero, fez uma espécie de barganha com o Pai Criador. Diante do intenso sofrimento propusera: "Senhor, que eu sofra o que tenho de sofrer em razão de meus deslizes de outrora. Mas conceda-me a bênção da melhora, e eu prometo me dedicar ao serviço no Bem! Que eu sofra, mas no trabalho".  Contrito, sincero, alçando Deus à Sua condição de Soberano, assumiu o compromisso com auxílio aos necessitados e aos enfermos da alma. Vieram, então, sinais de ter sido aceita a sua petição. Significativas melhoras surgiram. Ciente das constantes investidas do submundo espiritual, revelava-se cônscio de suas fraquezas e da necessidade de espalhar o Bem como lenitivo, como ato coringa (no sentido de prestar-se a múltiplas e diferentes funções). A prática do Bem e da Oração são assim mesmo, remédios para todos os males — antídotos divinos para as cobranças dos devedores que, sabemos, hão de caminhar pari passu com os credores.

Quando, na década de 1990, Lauro se propôs criar o Grupo de Estudos da Doutrina Espírita (GEDE), fazia questão de que as reuniões de estudos fossem acompanhadas das mediúnicas. Isso soava estranho num grupo de estudos. Mas Lauro, nunca submisso, tinha  fortes argumentos. Nunca abria mão  do pronto-socorro espiritual a entidades enrijecidas pelo ódio e pelo desejo equivocado de justiça com as próprias mãos. Nunca perdia uma oportunidade sequer de que a evangelização das entidades sofredoras ocorresse. Essa ânsia, fundada no seu drama pessoal, o levava por vezes a envolver médiuns imaturos nas reuniões, que por sinal seguiam a linha de Palmelo — durante o tratamento fluidoterápico, os médiuns davam passividade concomitantemente.

Há de se registrar que o maior esteio de Lauro sempre foi a companheira Amélia, sua guardiã diuturna. Vindos de Goiânia, Lauro e Amélia levantaram, em meio ao cerrado, o Sanatório Espírita de Brasília, do qual Lauro era o presidente. Consta 21 de abril de 1966 como data de fundação. Veio depois a Livraria Espírita Brasil Central (LEMBRA), que chegou a ser a maior distribuidora de livros espíritas do Brasil. 

Aflorou desde cedo em Lauro a facilidade de lidar com as palavras, o que o fez tornar-se exímio articulista e palestrante. A ordem era disseminar a Doutrina Espírita e seu caráter esclarecedor, por isso consolador. E o Sanatório Espírita, da famosa caixa postal 07.0888  — ali perto do Centro de Controle de Zoonoses (canil) de Brasília —, tornou-se um centro de irradiação dos postulados de Kardec, abrigando grupos e mais grupos de tratamento, de estudos, de assistência social. A mim, particularmente, o Sanatório presidido por Lauro suscitou preparar-me para enfrentar plateias maiores que a dos sábados, em que levávamos música e princípios da nossa Doutrina de Luz à reunião matinal com os pacientes. A terapia do Evangelho sempre foi de inestimável utilidade nos mais variados estados de comoção. 

A instituição criada por Lauro e Amélia era um abençoado abrigo de pessoas em variados estados de desequilíbrio —  provisoriamente isoladas no mundo incerto e perigoso que criaram para si —, sem condições de administrar a própria vida. As dificuldades financeiras apareceram, como de praxe — Lauro tinha por princípio não aceitar ajuda do governo.  Quando o Sanatório e a LEMBRA não mais puderam se sustentar e acabaram fechando, Lauro fez planos de peregrinar — como em tempos idos de ideia fixa na propagação do Evangelho — pelo interior de Goiás. Assessoraria os centros espíritas pequenos, dando-lhes suporte para se firmarem. Não deu certo. Foi quando se fixou em Rio Verde. Mas caiu doente. Paralelamente, tripudiado por pessoa de má índole, perdeu os recursos financeiros que tinha. Até que, com a ação pertinaz de amigos de Brasília, teve início a atenção diferenciada de familiares de Goiânia, onde passou a morar. Receberia, a partir de então, cuidados na recuperação da saúde, e carinho por parte dos sobrinhos. Agora sim, vinha o amparo de que se ressentia.    

Lauro, como muitos de nós, também tinha lá suas manias. Foi o precursor da "lixeira" que hoje é tão comum aos softwares e aplicativos de celular. Muito antes da informática tomar conta do nosso dia a dia, Lauro não jogava definitivamente no lixo antigos documentos contábeis do Sanatório. Enterrava-os no amplo espaço de que dispunha. Se fosse preciso, teria acesso aos documentos por meio de um mapeamento criterioso do descarte dos papéis. Por sinal, os desenterrou, quando da desativação da Instituição, dando-lhes novo destino. Certa feita Lauro desenvolveu um teclado diferente para sua máquina de escrever. Só ele sabia datilografar com o esdrúxulo teclado. Não se admirem — o teclado padrão que conhecemos não é o indicado para a língua portuguesa. Lauro percebeu isso, embora remando contra a maré.

Dia desses o Papa Francisco, num gesto mecânico, irritou-se com uma fiel que o puxou rispidamente pelo braço. Depois, publicamente, o humilde e gentil Sumo Pontífice desculpou-se pelo mau exemplo de perder a paciência. Ficava explícita a falibilidade papal. Nem Papa, nem Lauro, nem nós todos, podemos nos considerar criaturas perfeitas — somos simplesmente humanos. Prova disso é estarmos num mundo de nível 2 em processo de passagem para 3, na escala evolutiva definida em 5 níveis, como todo espírita sabe. Nossos equívocos são naturais. Nosso diferencial de espíritas é que temos um rumo claro a seguir, bem como os elementos necessários para tal desiderato. E estamos a caminho, a passos firmes ou trôpegos, mas a caminho. Paulo de Tarso também superou seus equívocos, tornando-se um baluarte do Cristianismo.  Vamos vencer nossas imperfeições no ritmo próprio de cada um.

Lauro equivocou-se por vezes no decorrer da existência. No entanto, o Bem que conseguiu disseminar tem peso considerável na balança divina. Usando de um raciocínio cartesiano, atos que prejudicam uma dezena são compensados com acertos no Bem que beneficiam milhares. Foi o que Lauro Carvalho implementou, sedento de quitar seus débitos. Mesmo centralizador, sistemático — mas de posição firme quanto a seus princípios —, marcou positivamente, de forma direta ou indireta, o caminho de incontáveis pessoas em desequilíbrio, em desespero, à procura de uma luz no fim do túnel. A instituição criada por ele e Amélia — o Sanatório Espírita — firmou-se como polo disseminador da Doutrina Espírita, originando muitos centros espíritas e grupos.  

Lá do mundo espiritual, nos últimos cinco anos, Amélia induziu muitas pessoas a ajudar Lauro, sequiosa de auxiliar seu amado companheiro de longas datas. Intuiu pessoas — de forma sutil, às vezes enfática — de que Lauro precisava ser levado de Rio Verde. E Amélia conseguiu. A ação firme de amigos que Lauro granjeara, que ouviram os apelos do mundo espiritual, ensejou que fosse ele finalmente acolhido em Goiânia. 

Este é, ainda, um resumo incompleto da saga de um missionário. Deixo aqui registrado, em nome de amigos também admiradores como eu, nosso abraço e nossa eterna gratidão ao querido Lauro. Que a readaptação ao mundo espiritual seja célere, e que em breve possa dar continuidade a seu trabalho no Mais Além. Amélia, aliviada, munida dos aparatos do amor incondicional, como não podia deixar de ser, foi a primeira a receber nos braços o companheiro Lauro, nos seus 83 anos de vida terrena. Era um fim de tarde ensolarado de 6 de dezembro de 2019. 

Aristides Coelho Neto, dez. 2019

NOTA — Lauro de Freitas Carvalho nasceu em 17.10.1936, desencarnando aos 6.12.2019. Amélia de Sousa Carvalho nasceu em 22.6.1916. Retornou à Pátria Espiritual aos 9.6.1999.

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Este texto foi publicado na revista REFORMADOR (Revista de Espiritismo Cristão) — FEB, Ano 138, nº 2.293, abril 2020, p. 30-33.

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