TEXTOS DO AUTOR

A VELHA E FASCINANTE LISBOA

Havíamos chegado de Roma. Estar em Lisboa foi um alívio depois dos estressados italianos.

Bonde de LisboaEu sabia mais de Paris do que de Lisboa. Imaginava parcamente os quase 900 anos de história de Portugal, pensando é claro num país que fora o berço de D. Afonso Henriques, D. João VI, D. Pedro I, D. Pedro II, infante D. Henrique, D. Manuel, Afonso de Albuquerque, Luís de Camões, Guerra Junqueiro, Pedro Álvares Cabral (sabem que até Cristóvão Colombo morou em Lisboa?), Vasco da Gama, Marquês de Pombal, Craveiro Lopes, Salazar... A história da região se conta não por séculos, mas por milênios.  Pois antes de D. Afonso Henriques conquistar a cidade de Lisboa em 1147, esta já havia sido fenícia, romana, muçulmana. Ocuparam a região iberos, celtas, mouros, gregos, cartagineses, lusitanos, visigodos, suevos.

Pelo lado paterno, estou ligado genealogicamente a Portugal (Souza Coelho, Macedo, Cordeiro). Pelo materno, à Itália (Bertuca, Pauli), daí meu interesse especial nos dois países. No fundo, nossas origens históricas, de todos os brasileiros, estão em Portugal mesmo. Telhados de LisboaColonialistas, oprimiram, usurparam? saquearam nosso ouro? Bem isso era de praxe. Na condição deles pode ser que seguíssemos metodologias diferentes, nas nossas conquistas de expansão de território, mas os fins muito provavelmente seriam os mesmos. Até as primeiras manifestações sobre a necessidade de mudança da nossa capital são atribuídas a um português, o Marquês de Pombal. É de 1761 a proposta mais antiga que se conhece de se transferir a capital para o interior, como sede do Governo da Colônia e do próprio Reino de Portugal. Em 1763 a capital mudou de Salvador para Rio de Janeiro. Capital no interior mesmo, obviamente, só veio vingar muito tempo depois. Mas a ideia estava lançada, lá do outro lado do Atlântico.

 

Azulejos portuguesesBem, vale dizer que o vento soprou a nosso favor em Lisboa. Havíamos chegado de Roma, onde os italianos, muito azedos e estressados, não nos causaram boa impressão. Lisboa foi então um alívio, na familiaridade com a língua, na gentileza dos portugueses. Tivemos sorte? Não creio.

O contato com os portugueses deu-se em meio a total descompromisso com guias, horários e programações ortodoxas. Curtimos a conversa nos supermercados, nos táxis, nos shoppings, nos bondes, no metrô, na rua, enfim.

Fizemos amigos no restaurante Grand’Elias. Incentivamos o jovem garçom Nelson, de São Tomé e Príncipe, nos seus planos ousados e nobres  de cursar Ciências Políticas. Apreciamos as africanas alegres e de sorriso largo, que espontânea e despretensiosa quiseram posar para a foto na praça em frente ao Mosteiro dos Jerônimos, e que sabiam jamais veriam o resultado captado pelas nossas lentes.

Conversarmos com os taxistas das Mercedes, para nós imponentes, que chegam a alcançar dois milhões de quilômetros rodados em dezesseis anos de vida. E percebemos a consciência política e a cultura dos portugueses. Eles sabem mais do Brasil do que sabemos da terra deles.

Ouvimos no metrô o lamento do senhor Pereira, nas suas agruras pré-operatórias de prótese de fêmur, que gentilmente nos colocou no comboio certo e que se emocionou quando lhe dissemos que as programações divinas a tudo presidem. Foi Pereira que me indicou passar com ele na roleta, com um mesmo bilhete. Assumiu minhas dores quanto a não poder usar o mesmo crédito para duas pessoas. O pior é que na segunda vez que tentei, fui pego em flagrante por um funcionário do metrô lisboeta.

Ginja sempre ginjaAinda em Lisboa, interagimos com moçambicanos e outros africanos das ex-colônias, identificando neles o sotaque mais parecido com o nosso. E foi num elevador de hotel que conhecemos Mário Coluna, já claudicante e grisalho, que conheceu o Brasil, Pelé, Santos F.C., Hotel Glória, e que jogou com Euzébio no Benfica, do que tanto se orgulha.

Observamos curiosos as viúvas na praça já de Nazaré, com suas meias três quartos e suas bengalinhas, contracenando com a vendedora de doces, castanhas, especiarias, e as gaivotas em seus voos elegantes.

Ficamos maravilhados com o Oceanário de Lisboa, segundo maior aquário da Europa, criativo empreendimento dos portugueses. Ao lado da Torre de Belém, refletimos sobre o ímpeto dos nossos irmãos que descobriram o caminho do mar. “Mar, metade da minha alma é feita de maresia”, dizem os versos de Sophia Andresen...

Embevecidos, fotografamos os telhados terracotas de várias nuances, na vista surpreendente que nos oferece o Castelo de São Jorge. Nos deliciamos com os bondes — mais os velhos do que os novos —, o que lembrou minha infância, dos bondes de São Paulo e Santos, nas viagens que eu fazia à capital com meu pai. E foi esperando o bonde, na volta da visita ao Castelo de São Jorge, que se deu a queda da Coroa, digo, da minha coroa, segundo pré-molar, que só voltou para o devido lugar em Brasília, após o nosso retorno ao Brasil.

Na praça D. Pedro IV (Rossio) entramos num boteco tradicional, a Tendinha, fundada em 1840. Guilherme estava com fome, e as mulheres queriam usar o banheiro. A fome foi parcialmente saciada com a combinação pobre de pão com omelete fria. Argh! E as mulheres desistiram do banheiro por razões óbvias. Seria tradição do lugar pegar o pão com a mão para cortar?  E de lá eu saí a refletir: será que o homem não lava as mãos desde 1840? Mas nada disso depreciou Portugal.

Tomamos a ginjinha, que pretende ser a marca de Óbidos e agora de Lisboa. E eu fingi que gostei, para não decepcionar quem oferecia. E tocamos as oliveiras como crianças que a tudo querem botar o dedinho. E vibramos com os carregamentos de sobreiros nas estradas, rumo às fábricas de rolhas de cortiça. E desfrutamos da visão das peras gigantes, das bananas piores que as do Brasil, das maçãs apetitosas próprias das terras frias, dos produtos enfim diferentes do que se costuma ver nas gôndolas dos supermercados brasileiros.

Comemos os pastéis de Belém na fonte, ali na casa que abriga o empreendimento desde 1837. E comemos bacalhau, ouvindo fado no S. Miguel D’Alfama. Foi Romão, o dono do Coração d’Alfama, quem nos levou gentilmente, de avental, pelas ruelas escuras, até o seu concorrente.  O fado no S. Miguel é cantado pela Fátima Moura, também proprietária, que fala também francês e canta como gente grande.  E ouvimos o cantor convidado. E ouvimos dona Luísa Vieira, acompanhados sempre de excelentes músicos. Dona Luísa, com ares de cumplicidade, nos vendeu seu CD, afirmando que era bem mais barato do que dos outros artistas que ali estavam se apresentando. Estratégia doméstica de marketing.  E foi aí que cheguei definitivamente à conclusão de que no fado existe um torneio velado (muitas vezes explícito) de potência de voz, o que leva a nossa capacidade de ouvir essa música dos portugueses a estritos trinta minutos. É acho que é por isso que os astronautas reclusos nas cápsulas espaciais nunca ouvem fado. Ou ouvem?

E tudo isso só veio enriquecer nossa viagem a Portugal E ficamos impregnados pelos trejeitos fonéticos do pequenino país. E sentimos vontade de falar como eles em muitos momentos. E nos sentimos acolhidos. E ficamos querendo voltar uma vez mais.

Aristides Coelho Neto, 18.12.2010

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