TEXTOS DO AUTOR

A PRIMEIRA NOITE DE ARRUDA

A primeira noite de José Roberto na Polícia Federal provoca cogitações. Em nós, nele, nos assessores. Enseja reflexões para Belinha, que tem uma maneira muito própria de analisar a situação delicada.

CarnavalBrasília, 11 de fevereiro de 2010. Parecia o corso dos velhos carnavais. Carros enfileirados acompanhando Arruda, o primeiro mandatário do Distrito Federal, em direção ao retiro que escolhera para passar a festa momesca.  Não se ouvia música, porém. Nem se viam carros abertos no cortejo, com foliões em festa. Claro, porque era retiro.

Os automóveis de vidros escuros, só os pneus cantavam afoitos no cortejo, movimentos rápidos como se houvesse pressa, mesmo para chegar a um lugar que ninguém nunca quis. A musicalidade só era percebida na percussão das buzinas tímidas de início, vindas de outros carros sintonizados na Band News e CBN. Mas os toques de buzina iam aumentando, como em datas de comemoração por um evento de peso. E tocavam, e se somavam, em muitos locais na Brasília de fim de tarde. Em tempos de rei Momo, o rei Arruda baixava e recolhia o cetro. E seu retiro não era espiritual, mas policial. Que ele não escolhera. Ou escolhera? de forma indireta?

Era horário de pico, congestionamento de carros e de celulares trançando a malha da notícia — Arruda seguia para a Polícia Federal para se entregar.

Eurides Brito, aquela que enfurnou maços de notas numa bolsa enorme, disse que vem dormindo muito bem. A consciência dela é de plástico rígido, silicone, sei lá, à prova de vexames. Ela tem couro duro, não se amofina com nada. Dormiria bem na cadeia. Talvez tivesse bons sonhos.

E Arruda? será que consegue dormir?

— Papai, se Arruda conseguir um telefone ele pode dar ordens para o Comando Vermelho?

— Arruda não é do Comando Vermelho — respondo. — E ele é verde, brinco.

Caramba! Me dá um calafrio quando penso na situação de um estuprador na cadeia. Dizem que é barra. E penso mais longe, em quem sevicia uma sociedade inteira. E aqueles carrascos naturais, do olho por olho, milicianos hospedados nas prisões, nem percebem que é muito pior.

Belinha, viva como sempre, interrompe as conjecturas de mim para comigo.

— Quando uma pessoa chega para se entregar à polícia, ela precisa ser algemada?

— Não, filhinha!

— Ou ela pode trazer as suas algemas?

Pensei comigo que existem pessoas que moldam suas algemas ao longo do tempo. Descuidam da construção da casa e quando menos esperam vão morar nela. Deixam a cama em desalinho, sem saber que vão se deitar nela.

— Quem mata alguém é algemado? — insiste.

— Sim.

— E quem rouba?

Resolvo não prolongar o assunto. Finjo que não ouço. Pra ver se Belinha esquece. Quando começa com perguntas capciosas, a coisa vai num crescendo insuportável, pela falta de repertório e tirocínio meus para respostas.

— O Arruda vai ficar num lugar com grade? Como nos filmes?

— Não, é uma sala especial.

Me ocorre que o perdão é um imperativo para a nossa saúde física e mental. Mas diante de um mal que se faz a uma coletividade, não sendo eu o representante legítimo dos prejudicados, que direito tenho eu de assumir como preposto, e perdoar Arruda ou quem quer que seja? Ou a corja parlamentar? Se não há consenso de que eu seja o procurador legítimo... Quem sou eu afinal nesse processo? Não seria isso tudo, o saneamento, um sinal dos céus e da justiça divina?

— As pessoas especiais, todas ficam em salas especiais? Tem de tudo lá?

— Não é bem assim, donzela. É que Arruda é uma autoridade. Tem um sofá lá, disseram.

— Se ele tem autoridade, por que ele não manda deixar a porta aberta? Pra poder  passear à noite... Tem banheiro na sala especial?

— Acho que não — eu pensava no que deve sentir uma pessoa pública que dorme na cadeia. Qual será a pior? a primeira noite? as subsequentes?

— Ai ai ai...

— O que foi, Belinha?

— Se não tiver banheiro, o Arruda vai ter de dormir de fralda.


Aristides Coelho Neto, 11 de fevereiro de 2010

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