TEXTOS DO AUTOR

A ORELHA É IMPORTANTE?

Num artigo de Rafael Lima, que tem por título "No pé da orelha", um relato sobre quanto a orelha do livro é injustiçada. Superficial? Enganam-se os que assim pensam. Ela é imprescindível.

No pé da orelha

 

"Esta é a orelha do livro

por onde o poeta escuta

se dele falam mal

ou se o amam."

Carlos Drummond de Andrade (trecho do Poema-Orelha)
 

A orelha do livro é uma injustiçada. Com tantos apêndices ao corpo principal do texto — prólogo, epílogo, prolegômenos, índice, epígrafe, bibliografia, notas biográficas, agradecimentos — foi justo quem ficou com a fama de apressada, superficial, dispensável. Um erro.

Quem busca informação requer ordem — a divisão em capítulos, a seqüência cronológica, a pesquisa iconográfica e, sobretudo, as apresentações, avais de confiança a um possível leitor, que justificam a existência eventual de tantos satélites parasitando os contos, o romance ou a poesia. Há casos em que a apresentação é de tal maestria que acaba roubando a cena da pièce de résistance, mas a regra geral mostra que, tirante seu caráter funcional, tais papagaios de pirata raramente são de alguma valia. Não é por acaso que aquele povo de óculos que habita as livrarias vai direto ao miolo do livro, e deixa para ler o resto em casa quando — se — o comprar. É aqui que entra a orelha.

A orelha é o calcanhar-de-aquiles de um livro. É sua parte mais exposta e mais vulnerável. Pode-se argumentar que a capa também o é, mas a capa está condenada à obrigação de agradar (ou agredir) ao se expor. Enquanto isso, a orelha desfila sua graça pelos diversos capítulos, ao marcar onde a leitura parou para atender o telefone, comprar pão ou ir ao banheiro (se bem que para muita gente este é o local preferido de leitura). Na orelha estarão não os comentários formais da crítica da contracapa, mas os elogios dos puxa-sacos; não os sonolentos panegíricos da apresentação, mas a dica cheia de picardia que desnuda o rei, no caso, o próprio escritor; não o enchimento de lingüiça de prólogos e epílogos, mas a síntese, a frase mínima, a que captura o leitor. Na orelha está o caráter de um livro.

Assim, é de estranhar a maneira rude com que a orelha dos livros tem sido tratada, inclusive pelos próprios escritores. Para ficar num exemplo só, Nelson Rodrigues era claramente pejorativo quando referia-se às "leitoras de orelhas de Marcuse", como se elas fossem incapazes de terminar um capítulo. Historicamente desprestigiadas em relação à lombada, que decora, garbosa, as estantes; submetidas a um papel periférico, as orelhas sempre fizeram a alegria dos ratos de livrarias, book worms e bibliófilos pela gratuidade da amostra mais fiel & generosa do que vem por aí. Na orelha o escritor manda uma piscadela de intimidade para o leitor. Na orelha o crítico atesta, objetivo: pode comprar (até porque não há espaço para tergiversação). Mais do que a sedução da capa ou a amostra grátis da contracapa, é a orelha quem transforma o leitor num comprador em potencial.
Portanto, caro leitor, mais atenção da próxima vez em que comprar um livro sem orelhas. Não se confia num livro sem orelhas.

Rafael Lima, em Digestivo Cultural

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