TEXTOS DO AUTOR

EMÍLIA E SAULO, UM CHOQUE DE REALIDADE

Reflexões sobre a virtualidade das relações e as dificuldades para se conhecer uma pessoa por inteiro.

Já haviam dito a Emília que não basta ter contato com os escritos de alguém para definir, e conhecer, a personalidade desse alguém. Papel aceita tudo. Para conhecer uma pessoa há de se conviver com ela. A convivência em pouco tempo desnuda qualquer um. Emília não acreditava nessa teoria.

Emília chegara a Saulo fascinada com uma crônica, escrita por ele, chamada “O perdão de Amália”. Não se conteve. E escreveu a Saulo. E telefonou a Saulo. E uma amizade aparentemente sólida teve início.

Conversavam sobre tudo. Trocavam cartas daquelas tradicionais, aquelas dos selos, que os correios levam, que os carteiros entregam, faça chuva faça sol, desviando dos dentes afiados dos cachorros. Nada ainda de e-mail ou skype. Tempo das cartas escritas à mão, embora as dele fossem já no computador. Emília tinha uma enfermidade relacionada ao sistema nervoso central e dizia que escrever, para ela, era excelente exercício. A admiração de Emília por Saulo aumentava a cada dia. E resolveram se conhecer. E foi Saulo que viajou ao interior do Paraná, terra de Emília.

O frio agudo daquele julho era neutralizado pelo calor da amizade de Emília. E ela se desmanchou em amabilidades, nos passeios, nas refeições preparadas com carinho, no quarto de hóspedes impecavelmente arrumado, em tudo enfim.

Saulo encantou-se igualmente com Emília. E quis retribuir a amizade demonstrada. A seu modo.

Emília era cercada de amigos e ajudantes que a exploravam. Isso entristecia Emília de forma visível. E Saulo traçou planos para que ela se desvencilhasse de toda trama, de toda relação ardilosa.

Emília, como disse, tinha limitações impostas por uma enfermidade atroz. E se enclausurava. Visivelmente, costumes mais dinâmicos eram um impositivo para uma vida de melhor qualidade. E Saulo elaborou um programa saudável do seu jeito. Jeito tosco o de Saulo.

Emília cuidava de cachorros problemáticos que lhe consumiam um tempo enorme. E Saulo achou que a prioridade de desvelos era para com humanos e para com rotinas que a preservassem diante das intempéries. Entre uns e outros, os humanos primeiro. Até sacrificar os irracionais poderia ser uma boa solução, quando não houvesse uma saída. Saulo tinha um jeito simplório de resolver as coisas.

Emília fumava muito. E Saulo ponderou que bastavam tantos outros problemas. Fumar não era inteligente. E organizou uma tabela que previa diminuição gradativa do hábito infeliz, até chegar à abstenção total (como se isso fosse fácil para os fumantes...).

Emília, cordata, foi anfitriã perfeita durante todos os dias que Saulo esteve em sua casa. Até que ele retornou à sua cidade.

Saulo só descobriu que exagerara, e que o momento não fora propício, muito tempo depois. Após longo silêncio de Emília, que não mais telefonava, não mais escrevia, Saulo tentou contato por telefone. Tentou apenas. Falou com a empregada, falou com a mãe, falou com a sogra. Emília nunca estava. Percebeu então, refletindo intensamente, que fora inoportuno. E que a sinceridade exacerbada sempre deve ser contida, e o ímpeto de interferir na vida alheia refreado, principalmente na de pessoas inteligentes e de personalidade formada. Elas não querem conselhos, mas amizade pura e despretensiosa apenas.

E Saulo não mais insistiu. De Saulo, Emília desistiu.

Certa manhã, Saulo lia um jornal antes de ir para o trabalho. Na terceira página, notícia de um evento em que se destacava a participação de Emília, ora vejam. Na matéria, os redatores evidenciavam três frases de Emília. A primeira: “Só se conhece alguém de verdade no cotidiano”. A segunda: “Antes de pregar para os outros, melhor olhar para dentro”. E a terceira: “De Saulo a Paulo há uma grande distância”.

Saulo fechou o jornal e sentiu um calor incômodo no rosto que vinha de baixo para cima. Aos seus pés um dogue alemão, de cadeiras arreadas, que pouco andava, não atinava para o rubor de Saulo. O hálito forte do cão fez Saulo torcer o nariz para o lado, antes de olhar pela janela. Seu olhar alcançou o horizonte e continuou, até o sul do país. E reviveu cada momento de sua estada no interior do Paraná.

Aristides Coelho Neto, 28.12.2008

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