TEXTOS DO AUTOR

Portunhol selvagem, teste pra revisor

Teste — que tal revisar um texto em portunhol selvagem? ou uma pérola do ENEM? ou um conto do araxaense Evandro Affonso Ferreira? — um recado ao Paulinho Branco.

“La gramatificacione servirá para matar los deslimites de la liberdade di lenguaje. Lo mais importante es non fixar nim museificar, mas deixá-lo errante caubói rollingstones, epifania sem nome 3 kilômetros por segundo al rededor del sol entre Sampi y Paraguay y el resto de la Gluebolândia.” — Douglas Diegues

 

“U portunhol salbaje es la língua falada en la frontera du Brasil com u Paraguai por la gente simples. Es la lengua de las putas que de noite vendem seus sexos en la linha de la fronteira. Es una lengua bizarra, transfronteriza, rupestre, feia, bella, diferente.” — Douglas Diegues

“O Convento da Penha foi construído no céculo 16 mas só no céculo 17 foi levado definitivamente para o alto do morro.”  —  “A História se divide em quatro: Antiga, Média, Momentânea e Futura, a mais estudada hoje.”  —  “Bigamia era uma espécie de carroça dos gladiadores, puchada por dois cavalos.” — (pérolas do ENEM 2007)

 

Saca-trapo

Quem pariu Mateus que o embale, cada qual com seu cada qual, excelência, não sou caju, que nasce com a castanha para baixo, se ele quer Deus para si e o diabo para os outros, dane-se, não tenho nada com o peixe, quem for culpado que agüente o balandrau, dane-se, não é porque chegou a hora da onça beber água que eu vou ficar com o feofó na mão, não sou de buscar lã e sair tosquiado, não senhor, o reclamante aí é muito esperto mas não caça rato... sim senhor, sargento, depois de tudo isso que acabamos de ouvir, não tenho mais dúvida: foi ele quem roubou meu preciso dicionário de fraseologia. — Evandro Affonso Ferreira (em Grogotó, p. 73)

 

Mangrorra

Semana inteira daquele jeito, como um burro olhando para palácio, querido, futebol vai começar, neca, nenhum sinal de vida, vem, macarrão ficou gostoso que só vendo, qual nada, sopinha de aspargo de vez em quando, sono, muito sono, veja, macambuzice tomou conta do infeliz, semana inteira daquele jeito, desde que se aposentou, está sentindo muita falta, vou pedir pro ex-chefe lá do cemitério deixar o coitadinho do meu marido enterrar de vez em quando algum defunto, vou sim.” — Evandro Affonso Ferreira (em Grogotó, p. 74)

 

Passei o dia inteiro hoje imaginando ter de revisar um texto escrito em portunhol selvagem, essa maluquice que toma força nas penas do  Douglas Diegues, do Joca Terrón, do Xico Sá, Ronaldo Bressane, Clarah Averbuck (“viejo cigano, te pago todas, nos vemos mais adiante na taberna do sr. Knuti [...])...

Mistura de português, espanhol, guarani e às vezes inglês, falado nas regiões de fronteira, o que parecia brincadeira quer se firmar como movimento literário latino-americano. Portunhol selvagem. Argh!

Eu aqui insone por causa da reforma, agora me vem o portunhol...

O portunhol selvagem não tem regras. É errante. Navega pra onde o vento soprar. Se a maioria dos autores deixa o revisor de lado, imagine onde entra o revisor textual na floresta do portunhol selvagem. Ele fica sobrando. Mas rindo do texto. E os autores rindo dele, claro.    

Quero falar portunhol selvagem só quando estiver tomando uma caneca de vinho (quem não se aventura no portunhol quando está meio tonto?).

Falar como nas pérolas do ENEM, só quando estiver bem deprê e só rolar papo-borracha (coisa engraçada, acho que a meninada do ENEM fala portunhol selvagem intuitivamente).

Ou será que quero falar como o Evandro Affonso Ferreira?... bem, vocês leram os trechos aí em cima? Pois é desse jeito que a gente fala quando está leve e solto, sem dever nada a ninguém. Difícil é escrever assim. E com tanta propriedade. O Evandro tem pontuação e vocabulário próprios, ritmo daqueles dos mineiros, dos nordestinos fluentes. Síntese pra ninguém botar defeito. E graça na arrumação.

Agora finalmente passo a entender o que o Paulinho Branco queria quando me pediu para revisar seu (do Paulo) texto das histórias de Araxá. Quando ele não quis que eu quebrasse os períodos, acho queria mesmo era seguir o modelo do Evandro, seu amigo de Araxá. Realmente, Paulinho escolheu o modelo muito bem escolhido. Vale a pena dizer também que em textos como os de Grogotó não se mexe.  Eles chegam para o revisor prontos, imutáveis, intocáveis. Quando a gente mexe, estraga. Quando mais, uma pinceladinha só.

Por isso não quero revisar nem portunhol selvagem (não me aventuro), nem pérolas do ENEM (não me apraz), nem textos como o de Grogotó (não sou capaz).  Eu queria mesmo era escrever como o Evandro Affonso Ferreira. Do jeito que o Paulinho também queria.

Êta revisor invejoso!   

 

Aristides, 4.9.2008

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