TEXTOS DO AUTOR

IDIOTA MESMO

Pelo menos, à primeira vista, eu estava idiota — não era idiota. Temporário, não definitivo, o que já era um alento...

É bem complicado o trânsito de veículos no Setor Bancário Norte, em Brasília. Mais complicado ainda, estacionar. Carros parqueados dos dois lados ao longo do meio-fio, eu aguardava em fila única. O carro à minha frente havia estacado. Um senhor de cabelos brancos, de terno marrom, de pé, levemente inclinado por sobre a janela, conversava com a motorista. A fila atrás de mim foi aumentando. Até que fiz bi-bi. Isso mesmo, minha buzina não é fon-fon, nem FON-FON. É daquelas parecidas com as de motocicleta.

O homem de terno gesticulou. A gravata balançou. Se o paletó não estivesse desabotoado, voariam os botões. “Seu idiota, não vê que estou tentando ajudar uma motorista que está perdida?”. Claro que eu não vira. Só vira que alguém conversava e o fluxo de veículos estava travado. Incontinenti o carro avançou, procurando um lugar mais adiante que não atrapalhasse o trânsito, já que a fila aumentara bastante.

Quando pude emparelhar com o carro da motorista perdida, o homem estava ainda agitado. Gesticulava, esbravejava. Com certeza havia se desconcentrado da tarefa de ajudar.

Abri o vidro da direita, abaixei a cabeça e perguntei: “Como o senhor sabe que sou idiota?”. Ele esbravejou: “Se não é, está fazendo papel de idiota”.

Segui em frente, à procura de uma vaga, como se estivesse satisfeito com a explicação. No fundo eu me reconfortava mesmo é com minha serenidade. Porque o anjo mau de minha consciência, aquele do tridente, havia sugerido que eu perguntasse ao homem outra coisa — se ele havia parado com os remédios tarja preta... Bem, por mim o caso estava encerrado.

Mentirinha, não estava mesmo!

Imaginava algumas alternativas plausíveis para o adjetivo que me fora imposto. Se a buzina indicava algum grau de insensatez, ele poderia ter me chamado de insensato.  Mas vocês sabem que nunca é assim. Quando alguém quer ofender nunca chama o outro de bobinho, tolinho, ou algo mais inusitado, como sacripanta. Pega uma palavra de mais impacto. E é muito comum as  pessoas gritarem, quando se desentendem. E apelar para preconceitos relacionados à etnia, estética, religião, sexismo, nativismo etc. que sabem poder alcançar a pessoa na veia. Tentam mirar no ponto fraco. E danam a chamar o outro de feio, desdentado, aleijado, débil mental, sujo, malcheiroso, pobre, filho de mulher de má vida. E vem também a comparação com seres do reino animal que dão um impacto danado — cachorro, burro, anta, macaco. Isso denota, reconhecemos, falta de argumentação. Pura falta de argumentação e ponderabilidade. Os adjetivos não envolvem virtudes adquiridas ou não, nuances de caráter, erros de interpretação, mas características de nascença, comparações pejorativas, preconceitos. Não se pode esperar algo além disso de quem está descompensado e fora de seu ponto de equilíbrio. E há pessoas que se desarmonizam muito facilmente, chamadas de estopim curto.

Poderíamos aqui desenvolver o tema da violência urbana, dos infortúnios que acontecem quando alguém não apenas verbaliza, mas usa uma arma que tem no porta-luvas. Em casos assim, parecidos com o meu, nunca se deve jogar lenha na fogueira. As consequências são imprevisíveis. Mas não é bem disso que eu queria  falar.

Queria mesmo é dizer que passei a tarde toda incomodado com o adjetivo de idiota. Me foi dado por uma pessoa que não me conhece. Me senti profundamente ofendido. E isso é que é realmente muito mau! É que quando uma pessoa nos ofende, ela está em nítida desvantagem, sabiam? Ela sente no emocional os efeitos do ato insano de imediato. Como um eco de um grito destrambelhado que volta e agride os seus ouvidos.

Dessa reflexão, vale filtrar o mais importante — diante de situações de estresse, jamais entre no clima de desarranjo. Esqueça!

Quanto ao fato de perder tempo com este caso, e ficar esmiuçando um problema que não devia ter relevo de forma alguma, dá o que pensar... Posso ser um idiota mesmo!

Aristides Coelho Neto, 27.3.2014

“Aprendi através da experiência amarga a suprema lição: controlar minha ira e torná-la como o calor que é convertido em energia. Nossa ira controlada pode ser convertida numa força capaz de mover o mundo.” — Mahatma Gandhi

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