FALANDO DE DOUTRINA ESPÍRITA E MORAL CRISTÃ

CIDADÃO CRISTÃO

Ele estava entre a cruz e a espada. Achava que ser cristão e ser cidadão eram atos excludentes: nunca poderiam acontecer ao mesmo tempo.

Aristides Coelho Neto


O bondoso J. Pedro era mais conhecido carinhosamente como Jota, na repartição. Possuía a vivência cristã.  Sexagenário, ainda não se aposentara, pois perderia a maior parte de seu parco salário.  Seus ouvidos atentos, ele os emprestava a quem quer que quisesse desabafar.  Tinha sempre uma observação objetiva, cheia de sabedoria, a fazer.  Suas palavras, quando não consolavam, funcionavam como dardos bem atirados que, com a rapidez do raio, iam certeiros ao alvo.  Esclareciam de uma forma didática e contundente.

Marcos chegou de mansinho e bateu de leve na porta, pedindo licença.

— Bom dia, Jota, tem um tempo para mim?

— Bom dia, Marcos.  Sente-se, por favor.  Em que posso ajudá-lo?

— Não sei se você já teve dúvidas quanto a como agir em determinadas situações. Sei que tem absoluta confiança na "receita" de Jesus...  Eu, ultimamente, tenho estado entre a "cruz e a espada".  Muitas vezes, acho que a pessoa tem que optar entre ser cristão e ser cidadão... As duas coisas não combinam.

— Será mesmo? — indagou Jota, acomodando-se na cadeira. — Dê algum exemplo.

— Tenho três para lhe dar.  Até anotei, para não esquecer, já que são casos que ficam martelando em minha consciência.

— Certa vez, no tempo em que eu era síndico de um edifício, recebi um telefonema mal-humorado de um condômino.  Dizia que a criançada, lá no térreo, fazia muito barulho e que atrapalhava o seu trabalho.  Que eu tomasse as devidas providências. Acrescentava ainda que ele era um assessor de Senador e tinha muito o que fazer com  importantes trabalhos que levara para casa.  Bem, eu era adepto do diálogo entre os moradores.  Quando se esgotassem as possibilidades, que viessem a mim.  Afinal, estava eu como síndico, porque ninguém queria sê-lo.

— Como procedeu você? —  perguntou Jota, atencioso.

— Disse exatamente isso, mas ele estava muito irritado.  Escrevi então um comunicado e afixei em todas as entradas do prédio.  Dizia, além do que já externara diretamente àquele senhor, que os moradores evitassem usar de suas prerrogativas, ou predicados profissionais equivocados, para convencer o síndico de qualquer coisa que fosse.  Que fomentassem a conversa fraterna entre si.  E que assessor de Senador para mim era um agravante e não um atenuante, diante da crise de credibilidade por que passava o Congresso Nacional...

 Jota levantou-se, tomou um gole de água.  Chegou até a janela e virou-se para Marcos, dizendo em tom paternal:

— Veja bem, Marcos, você está certo quando exalta o caráter positivo das relações fraternas entre as pessoas.  Notou uma fraqueza do homem, que nitidamente orgulhava-se de ser um alto funcionário.  E expôs essa fraqueza em público.  Foi mordaz.  Nesse momento, não foi cristão.  Tente consertar isso um dia.  Se você tem conhecimento cristão, tem obrigação de ser superior, quando se tratar de entender as deficiências alheias.

— Sabe, Jota, a regra do "fazer aos outrossomenteaquiloque desejamos quenos façam" eu tenho tentado aplicar.  Acho que fiz o que gostaria que me fizessem, ou seja, que alguém me chamasse a atenção sobre a minha falta de humildade, proclamando ser uma pessoa especial, pelo cargo que ocupava. 

— É louvável você nortear sua conduta pelo nobre preceito de Jesus.  Essa regra  do "fazer aos outros o que gostaríamos quenos fizessem" é tão lógica, tão sábia, que até Buda, há 500 anos antes de Cristo já o formulara.  Da mesma forma, Laotse e Confúcio.  Mas, tenho certeza que você não gostaria que ser admoestado daquela forma.  Pense bem.

Vamos ao segundo caso, Marcos.

Marcos estava pensativo. Mas, como se despertasse de uma profunda reflexão, voltou a falar.

—  Ando pensando muito...  As pessoas têm estado muito apáticas, no exercer de seus direitos. E dos seus deveres, principalmente.  Não sabem aplicar conceitos básicos de cidadania, e no momento de agir, se omitem.  Como eu tento exercer essa tal cidadania, muitas vezes sou criticado.  Eu fazia parte de uma comissão de recebimento da obra de construção de um posto policial.  Durante a vistoria, notei que os seus ocupantes haviam transferido — do lado de fora para o lado de dentro — um telefone público para uso interno do posto.   Não era minha alçada, mas tomei as providências junto à concessionária de telefonia, denunciando o fato.  Era, para mim, a apropriação indébita de um bem público.

Jota não parou para pensar.

— Existem situações em que não adianta você se expor, tentando apontar um erro diretamente para os envolvidos.  Os infratores já sabiam muito bem que estavam errados.  Você percebeu isso intuitivamente, e tomou a providência correta.  Telefone público é de todos, já diz o nome.  Foi cristão em pensar no usufruto da maioria.

Marcos respirou aliviado.

— Falta o terceiro e último caso que o aflige.  Relate, Marcos.

— Era uma obra que eu supervisionava numa escola de uma cidade-satélite de Brasília.  A Diretora revelava ser muito religiosa.  Três vezes por dia ela e o corpo docente rezavam, rogando o amparo de Jesus para aquela comunidade escolar.  Notei que as calhas que captavam as águas servidas estavam sujas e obstruídas, podendo trazer problemas de saúde.

— E o que fez?

— Eu perguntei a ela, com polidez, é claro: "Diretora, pede a Jesus paraafastar a dengue, também?".  Ao que ela respondeu: "Claro! Todos os dias".  Então, eu disse: "Senhora Diretora, é muitotrabalhoimposto a Jesus. Sãocoisasquesão da nossacompetência.  Mande limparregularmente as calhas, que Jesus ficará muitocontente e maislivreparatratar de outrosassuntos".   

— Ela zangou-se? 

— Não.  Agradeceu a lembrança.

— Realmente, Marcos, você está correto.  E ao que tudo indica, aquela senhora parecia ser uma cristã praticante.  Sendo sincera, então não se chatearia com você.  Era um alerta bem-vindo.  Mas, outra pessoa qualquer poderia ter-se aborrecido com a sua forma de colocar o problema.  Conteúdo correto.  Forma errada de comunicar.

Marcos estava um pouco envergonhado.  Em três questões que envolviam conciliar cidadania e atitude cristã, acertara plenamente só em uma. De 0 a 10, obtivera nota abaixo de cinco.  Mas Jota era muito hábil e, diante da expressão de desapontamento de Marcos,  rematou:

— Veja bem, é fácil eu lhe dar conselhos.  Eu também tenho dificuldades, diante de situações que apresentem várias alternativas para agir como cidadão-cristão.   Você já tem a receita para os casos de dúvida. Citou o mandamento que se aplica.  Se, apesar disto, ainda persistir a dúvida quanto a como proceder, lembre-se que nessas horas nossos mentores espirituais nos sopram a solução ao ouvido.  O grande problema é que nem sempre estamos sintonizados com o Mais Alto.  Ou seja, eles sopram e a gente não registra. Faz-se necessário, então, orar e vigiar sempre. Não é simples?

Marcos não resistiu.  Deu um abraço apertado em Jota.

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