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BOLSONARO E A HISTÓRIA

Bolsonaro na História e a história de Zé Mário.

São 4h da madrugada. A lua é nova, o breu é intenso. Uma coruja, olhos penetrantes, gira a cabeça para o lado procurando a presa. O morcego rouba a água dos beija-flores e empreende seu voo cego. Um saruê procura a caça, o cão ressona. O pastor prega na tevê. Bolsonaro dorme. 

Zé Mário, professor desempregado, acorda ao toque do velho despertador. Veste-se, faz o asseio, toma o café com pão e sai a pé em direção ao ponto de ônibus distante três quilômetros. Seu destino é o Palácio da Alvorada, longa viagem num horário em que o entorno do DF desperta e segue em massa para o plano piloto ao raiar do dia. O coletivo passa às 5h45. Zé Mário não esconde a euforia. Ver o presidente de perto, quem sabe tirar uma selfie com ele. Quem sabe apertar sua mão.

São duas linhas de ônibus até o Alvorada. Zé Mario cochila no engarrafamento de sempre da BR. Perto das 8h, a revista. Faz parte do protocolo para entrar no cercadinho. A imprensa fica mais adiante. Em meio à seleção prévia, quem não é apoiador não entra. Tenta-se evitar participante de ideologia contrastante. O segurança tem uma conversa com todos. Pede que elogiem e que não façam perguntas difíceis ao supremo mandatário. 

São quase 9h quando o carro preto com a bandeira do Brasil aponta na pista. É ele. O pessoal se alvoroça. E Bolsonaro chega. Acena, cumprimenta, isola a mão esquerda, cumprimenta com a direita. Fala coisas desconexas mas com rigor militar. Fala de soquinho, parecendo viver de vírgula. Quando fala das esquerdas conspiradoras ele sorri maldosamente. Quando fala de coisas às vezes sérias outras controversas, esboça um sorriso de escárnio. 

Acotovelam-se todos. Zé Mário está espremido mas reflexivo. Na maioria das vezes seu ídolo resvala na ética e na étnica, passa do imoral para o amoral. O professor manifesta sua estranheza baixinho, ao que o companheiro do lado explica. "É que o presidente é sonâmbulo, está dormindo. Só um tiro de canhão o acordaria. Tem estado assim. Às vezes se lembra, outras vezes não, do que falou. Mas para qualquer frase que soa errado, tem o hábito de mantê-la depois (que coragem, que sabedoria! macho alfa!) com a ajuda dos filhos. Por isso, não devemos fazer nenhuma pergunta polêmica." O olhar de Bolsonaro é vago, mas desconfiado, a postos para enfrentar quem por ali quisesse a sua vaga.

O presidente parte em meio a aplausos. Ouve-se alguém gritando: "Esse, sim, é um presidente de verdade!" Todos sorriem de satisfação, alguns dizem amém, lamentando o fim do evento rápido. O pessoal da imprensa pouco anota. Não tiveram vez. Zé Mário queria mais é que Bolsonaro estivesse ligadão e não naquele estado, incapaz de expressar emoções coerentemente, parecendo estar desconectado com o mundo. Teria ele ficado abalado demais com a fala da China ao seu filho e pupilo? ou com um suposto comandante operacional do país que estaria atuando nesses momentos de desconexão do presidente? já que o Brasil não pode parar?

Zé Mário empreende o comprido caminho de volta. Logo mais, o nosso personagem vê Bolsonaro aparecer em três ocasiões na tevê. E o professor desiludido por falta de emprego observa o semblante de Bolsonaro nos vários momentos na telinha.  Na entrevista do meio-dia, nota que a expressão do presidente é a mesma — só pode estar dormindo ainda. Zé Mário aprendeu a identificar. Só resta saber se todas as falas, consciente ou inconscientemente, convergem, apresentam nexo. Teria o sono letárgico relação com bipolaridade ou esquizofrenia?  Às 16h, quando fala na abertura de uma solenidade, mesma coisa. À noite, numa live, o presidente da República também não esconde o estado de letargia. 

Nosso amigo Zé Mário cai então num profundo desânimo. Considera plausível que a História do Brasil deva esperar as claras definições do estado do capitão para os registros indeléveis e pertinentes. Já a triste história de Zé Mário, se tivesse uma moral, seria —  o país aguarda insone. E Bolsonaro dorme, até nos momentos mais críticos. E mais que isso: delira!

Aristides Coelho Neto, 6 de abril de 2020

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