TEXTOS DO AUTOR

O DIA EM QUE IVOLINDO BECHARA BATEU LÁ EM CASA

O confisco dos travessões e a carteirada de Ivolindo, a pedido do Zero Dois.

A campainha tocou. Eu não conhecia a pessoa que se insurgia por detrás do portão. Geralmente a gente passa os olhos tentando decifrar se a figura é do bem ou do mal, em época de maldades explícitas. Estava o sujeito num carro de cor verde-oliva. Boa aparência. Deu boa-tarde.

— Pois não!?...

— Meu nome é Ivolindo Bechara, sou oficial de justiça. Posso entrar e conversarmos um pouco?

Confiei, abri. Ele entrou. E nos sentamos na varanda.

— Toma um suco, uma água?

— Aceito um suco, obrigado.

Puxei conversa: — Por que seu carro é verde-oliva? O senhor é do Exército?

— Não, não! Gosto muito dessa cor. Sou oficial de justiça e sobrinho do Bechara. Conhece?

— Que honra! Bechara é parâmetro, esteio de muitos revisores. Tem até devotos. Está aqui como sobrinho de Bechara ou como oficial de justiça?

— Bem, primeiro vamos ao assunto que me trouxe. Depois a gente decide... Soubemos que o senhor é revisor textual e alguém me mandou aqui para lhe adiantar algumas coisas que devem acontecer em breve, dentro dos planos do governo.

— ...

— Em tempos de liberação de posse, e ampliação da abrangência para aqueles que querem porte de arma, julgou-se que travessão é considerado arma branca. Vamos recolher primeiramente um travessão de cada frase que julgarmos estar sobrando. Há projeto sendo elaborado para retirada de todos os travessões da língua portuguesa em, no máximo, um ano.

— "Julgou-se" é vago. Quem julgou? Armas brancas? Serão substituídas pelo quê?

— Por vírgulas.

— Senhor Ivolindo, que história é essa?! Tem algum mandado? Alguma ordem judicial a cumprir?

— Não, senhor. Estou aqui a pedido do Zero Dois, filho do capitão. Em breve, travessões, facas, canivetes serão recolhidos... e substituídos por armas com mais poder de fogo — fuzis, metralhadoras, pistolas etc.  Travessão, por exemplo, tem duas pontas, mas não protege o cidadão. Só peço um pouco da sua paciência para lhe apresentar sete frases que selecionamos, em que vamos confiscar apenas um travessão de cada. Claro que só por enquanto — logo será ampliado o confisco. Para segurança do povo brasileiro, vai sair de circulação todo objeto cortante.

— E como vamos descascar batata, cebola?! E espetar azeitona sem os travessões? Bem, vá em frente.

— Em revisão textual de que o senhor participou, pinçamos então estas sete frases — esclareceu Ivolindo. — Vamos à primeira.

"— É esse o meu parecer — disse o tio de Estela. — As fortunas devem ser associadas.

— Um travessão "desse aí" vai ser confiscado.

— Negativo, nem pensar.

"— Singular prazer! — comentou a mulher do financista. — Nada mais agradável que andar sempre para a frente, sozinho, e pedalar até perder o fôlego."  

— Um desses também vai pro brejo.

— Inacreditável!

"— Era bem simples ter um rei — disse o deputado. — Vede a Inglaterra." 

— Dos três, um será levado para o exílio.

— Como assim?!

"— Então está decidido — disse Adriana. — Vais casar-te?"

— Outro caso em que, dos dois, só fica um.

— Mas que interessante...

"— E eu? — disse Adriana, tirando as luvas. — Serei enganada por meu marido?"

— As vírgulas são suficientes. Melhor até confiscarmos os dois travessões.

— Mas que coisa mais estranha. Como se chama esse confisco, em pleno Estado Democrático de Direito? E como o Estado mete o bedelho onde não é chamado? Travessão é praticamente propriedade do povo, e não só do Brasil.

— Estamos abolindo a velha política e a velha linguística, senhor. Simples assim.

— Há mais um caso que lhe diz respeito.

"— É a Torre do Solitário — respondeu. — É habitada por um famoso original."

— Pode tirar o cavalo da chuva, os dois travessões vão ficar.

— E o último, dessa amostragem que eu e o Zero Dois fizemos.

"— O Solitário! — repetiu por sua vez o conde de Noirmoutiers. — Escute, não é um escritor, um autor? Não tem publicado vários livros?"

— Meu querido amigo Ivolindo. Isso não é nada bonito, muito menos lindo, Ivolindo. Daqui você não leva travessão algum! (o que me vinha no pensamento era "vá procurar sua turma" ou "dane-se o Bechara", o sobrinho, claro, mas me contive). E ainda perguntei: — Quer mais um suco? usar o banheiro?

— Não, obrigado! Espero que tenha entendido. Se, de tudo, "isso daí" não der certo, a gente recua.

— Não, Ivolindo, não é assim! Sinceramente, estou entendendo cada vez menos essas maluquices. Essa prática de fazer as coisas impensadamente e recuar depois não é própria de um governo sério. E acho que o senhor não deveria vir de verde-oliva já que não é do Exército. E nem dar carteirada de oficial de justiça, já que veio despido dos meios judiciais para confiscar meus travessões. E com quem você aprendeu esse tal de "isso daí" que falou há pouco? Essa inovação simplória não é do capitão?

Ivolindo se levantou com cara enigmática e tomou a direção da porta. Eu ainda fiz questão de aproveitar a presença dele, que andava com expressão de constrangimento até o carro verde-oliva.

— Quando estiver com Zero Um, Dois, Zero Três, Quatro, diga a eles para conterem esses ímpetos de molecagem. E diga ao pai deles que está na hora de começar a conduzir a embarcação de verdade.  E quanto ao seu tio, não estou interessado se ele aceita ou não essa nova linguística sei-lá-o-quê. Quando voltar aqui, venha preparado, pois posso espetar seu traseiro com um travessão Times New Roman. Passe bem!

Cá comigo, seria mesmo sobrinho do Bechara? ou foi uma tentativa de golpe?

Aristides Coelho Neto, 24 maio 2019

PS - Times New Roman é fonte dolorosa, porque tem serifa.

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