TEXTOS DO AUTOR

JOIO E TRIGO

Nesta reflexão, grandes encruzilhadas. Dizem que isso indica crise existencial.

Confesso que, às vezes, me sinto como numa encruzilhada. E agora que ando escutando falar incessantemente de joio e de trigo, pronto! — mais uma dúvida em minha frágil cachola. E seja qual for o tema sobre o qual me manifesto, vem a dúvida, não só em mim, mas no interlocutor presente ou virtual. Como me enquadro? — social-democrata, centro-esquerda, esquerda raiz, moderada, neoliberal? Não quero ser joio! Qual o rótulo? que as pessoas estão acostumadas com rótulos... 

Abomino veementemente a volta dos militares ao poder, que minorias pretendem recomendar como remédio para a crise — a abominável volta dos anos de chumbo. Ao mesmo tempo não entendo o amor desenfreado do nosso governo pelo Maduro, da Venezuela, e Ahmadinejad e Hassan Rouhani, do Irã.

Quais ditaduras eu teria de apoiar para, em definitivo, conseguir meu rótulo? Pois é, não quero ditaduras!... Se bem que tenho vontade de ir a Cuba, sentir presencialmente as dificuldades por que passam os cubanos. Deixar-me contagiar pela musicalidade e sentimento de superação daquele povo amável e sofrido. Abaixo as torturas de Guantánamo! 

Estados Unidos? Não tenho vontade de conhecer. Talvez eu tenha assimilado tudo que Noam Chomsky falou em O que o Tio Sam realmente quer? Espero mesmo que o império entre em decadência — em consonância com o que prevê a história da humanidade quanto aos ciclos do sobe-e-desce — e parem de fomentar guerras intermináveis. Sei que o pensamento de governo dos EUA não se coaduna com o de grande parte dos cidadãos comuns americanos. Em todos os lugares do mundo há gente sensata. Quero também a criação do Estado Palestino. Já passou da hora. Abaixo o confinamento cruel de irmãos nossos de humanidade na Faixa de Gaza. Extremismos? Ora, não há que se adjetivar grupos ou pessoas de forma generalizada. Os atos de selvageria que assolam a mídia não podem e não devem comprometer o mundo islâmico. 

Quero a punição de todos os culpados pelos desmandos com dinheiro público no Brasil, sejam de que partidos forem. Não concordo com pagamento de militantes para fazer coro orquestrado. Sim, sim, votei na presidente Dilma na primeira vez. Na segunda, votei na Marina no primeiro turno, quase votei em Dilma no segundo. Estou em vias de desistir dela somente agora. E se provarem algo mais acintoso contra Dilma, que ela pague. Normal.
Impeachment? Não há motivo. E trazer Michel Temer ao trono? Ai ai ai, é de se pensar nessa tragédia.
Sou a favor do Bolsa Família, com bom monitoramento. Acho que em alguns locais a miséria é tanta que nem a quem pedir a pessoa tem. E vale lembrar, no entanto, que com o dinheiro que vai pelo ralo, nós erradicaríamos a miséria neste nosso Brasil. Fui admirador de Covas. Participei das manifestações pelo Diretas Já. Ajudei a botar o Collor pra fora. Creio que só a Educação vai mudar os destinos deste país, preparando governantes a serem mais voltados para o bem comum, embora ache que isso vai consumir umas três gerações. 

Abomino a arrogância que toma conta dos fundamentalistas do partido de Dilma. Não vejo as pessoas que destoam de ideias e preceitos como burras. Ora, burro seria eu de não valorizar os que argumentam contra. Às vezes acho até que todas as correntes políticas, em princípio, querem o bem comum. Se cada um enveredou por um caminho diverso para chegar ao objetivo, quero crer que os bem-intencionados o fazem com amor à causa. Há de se entender as diferenças. Mas é difícil! Surgem intenções veladas por trás de tudo.  

Quando estou quase finalizando este desabafo, me perguntando, afinal, o que é que eu sou — moderado, sonhador? o que é mesmo que eu sou? —, me vem à mente mais essa dúvida — se sou joio, se sou trigo. É que andam recorrendo demais a essa parábola evangélica relatada por Mateus. E apelando demais para situações em que salvadores e usurpadores da pátria se confundem. 

Nunca vi o verdadeiro joio na natureza, que dizem se parecer com o trigo. Mas todo mundo quer ser mesmo é trigo. E é tanto joio com pele de trigo, é tanto trigo que não passa de joio. É tanto joio treinado para ostentar farinha, digo, carinha de trigo... 

Há situações em que o sujeito tem praticamente escrito na testa — sou joio! Mas ele não admite. Isso me faz lembrar o caso de Joio Paulo. Foram admoestados, ele e o Joio Soares. Não queriam saber de trabalhar, isso lá na empresa pública do interior do Acre. Joio Soares se aposentou. Mas Joio Paulo continuou atuando com a displicência de sempre, o que o levou a ser transferido do Acre para Rondônia. É que seu chefe, Rô Trigo, pedira arrego, cansara. E Joio Paulo lá ficou encostado, em Rondônia. Como é difícil mandar funcionário público para o olho da rua!

Quando mudou o governo, Joio Paulo voltou para o Acre por cima, desta vez para ser chefe justamente de quem o havia despachado — pois é, agora era chefe de Rô Trigo. Guinadas da vida. E quem era joio virou trigo. Alguns que eram trigo continuaram trigo, fiéis aos seus princípios. Só uma pequena parte optou por deixar de ser trigo e chafurdar-se nas poças de joio. Convivência. Em suma, virou uma confusão!

Essa confusão reina em muitos lugares. Isso daria filme semelhante àqueles de alienígenas que se misturam aos terráqueos, e você passa o tempo todo sem saber quem é quem de verdade.

Vale lembrar ainda de uma inusitada batida policial, em que meu amigo Zé Carlos estava no local. Levaram algemados uns dez que eram joio e acho que sete supostamente trigo. Ufa! Zé nunca vira coisa igual. Foram identificados alguns pelo rótulo. Outros pela índole. Outros pelo código de barras, já que são produtos do meio, dizem os antropólogos. Quando o policial de bazuca, roupa preta, capuz e algemas penduradas na cintura, perguntou ao Zé Carlos se ele era joio ou se era trigo, ele não teve dúvida — disse que era quibe.

Aristides Coelho Neto, 28 maio 2015

PS de nov. 2021 — Passados 6 anos e 5 meses da data desse texto, muita água rolou no Brasil. Um impeachment por motivo duvidoso, fruto do poder tanto excessivo como inexplicável de um presidente da Câmara corrupto e vingativo. Fake news disparadas em massa povoaram as redes sociais no Brasil durante o período pré-eleitoral de 2018 — o TSE não estava preparado para evento criminoso dessa magnitude e com tal poder de penetração e letalidade. E a esquerda foi demonizada. Os incautos embarcaram num mar de mentiras. Um presidente da República inexpressivo subiu ao pódio, com personalidade tosca, sem programa de governo. E o Brasil mergulhou em coma profundo.

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