TEXTOS DO AUTOR

A VELHA OLIMPÍADA DE NATAL

Olimpíada na verdade é quadrienal. Essa velha disputa entre Papai Noel e Jesus no Natal acontece todo ano.
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Ando meio desatualizado quanto aos heróis e personagens com superpoderes da atualidade, a gosto da criançada. Parece que a família Marvel ainda sobrevive. Ouço falar muito, também, da Fada Sininho — hoje Tinker Bell, ora vejam. E ouço também de Peppa Pig, Rainha Elsa, Tartarugas Ninja, Papai Noel. A maioria dessa turma voa. Sim, Papai Noel também voa, puxado por suas renas. Calma, já entendi que a Peppa não tem superpoderes.

Tenho o maior respeito por São Nicolau, mas depois que o transformaram em Papai Noel, houve um expressivo desvirtuamento das intenções cristãs do personagem agora vestido de vermelho, com suas botas, seu trenó, suas renas, descendo pelas chaminés — e permanecendo sempre limpinho —, presenteando alguns com presentes caríssimos. Outros com presentinhos medianos às vezes. Outros com regalitos simbólicos. Para outros mais, apenas balinhas. Para a maioria, nada mesmo...

Papai Noel, para as pessoas que refletem sobre a lenda, acaba sendo propaganda enganosa, não cristã (já que discrimina as crianças). Foi a Coca-Cola que investiu nessa imagem do velhinho simpático. Até a roupa verde de São Nicolau passou a vermelha, em meados do século passado. O que é mais sério nessa empreitada puramente comercial, de imposição de Papai Noel no Natal, é o roubo da cena exatamente na época em que se comemora o nascimento de Jesus. Não importa se o Enviado Divino não nasceu em 25, se nasceu em outro mês — o que é mais provável, segundo os historiadores. O que importa é o que chamei de olimpíada: milhões de papais noéis disputando com aquele que já nos presenteou com valores que não vencem, não se estragam, não enferrujam — valores espirituais.

Menina e bomba

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E somos todos envolvidos nessa onda. Cartinhas de crianças crédulas (incentivadas pelos pais) confessando que obedeceram ao papai e à mamãe, na ânsia de receber o que almejam. Mal sabem as crianças que isso não basta. Aliás, não basta deixar de fazer o mal, esquecendo-se de fazer o bem. Para ser premiado pelo tribunal da consciência, há de se aprender que as carências materiais não são apenas parte de documentários de tevê. Elas fazem parte da dura realidade do planeta. Daí a necessidade de nossos filhos e netos voltarem os olhos para a compaixão, o compartilhamento. Entenderem que a vida não é um mar de rosas para milhões de criaturas, das quais o Papai Noel não vai passar nem perto. Daí que poderíamos concluir que essa figura lendária e simpática pode fazer mais mal do que bem.

Quem, então, o mais importante — Jesus ou Papai Noel? Quem traz conceitos renovadores, quem traz o cajado em que todos podem se apoiar nas mais variadas dificuldades? Alguma dúvida? O velhinho da Coca-Cola só traz coisas materiais. Que se acabam. O Mestre e Modelo Maior traz valores duráveis, que extrapolam os limites tacanhos do mundo físico. Isso fica mais claro quando dito por Frei Betto: "Lojas não saciam a nossa sede de Absoluto. Há que empreender uma viagem ao mais íntimo de si mesmo, para encontrar um Outro que nos habita". Ao comentar uma eventual viagem à Lapônia, terra do Papai Noel, Frei Betto fala de outra viagem que enseja muita coragem: "[...] virar-se pelo avesso e despir-se de todo peso que nos impede de voar nas asas do Espírito". Esse voo difícil e profícuo não se faz com o auxílio de renas, acrescento eu.

Cansei dessa velha olimpíada de milhares de papais noéis espalhados pelo mundo a serviço do comércio, obscurecendo a figura daquele que, pela sua importância e magnanimidade, dividiu a história — antes Dele e depois Dele. Cansei de natais sem corais, sem preces, sem reflexões, distorcidos na sua finalidade precípua, sem a presença do Aniversariante Maior, ao som de pagode.

Como fazer a transição da crença inócua do Papai Noel para a realidade insofismável de Jesus, o Sublime Enviado? Aos poucos. Mas para tudo há de se ter um começo. Quem sabe experimentar um Natal com presentes zero, sem consumismo, apenas com o desafio de fazer pessoas felizes dando-lhes, quem sabe, não o que almejam, mas o que precisam. Ou o que estiver ao alcance do nosso coração, e não do nosso bolso. Isso pode até — eu disse "até" — passar por bens materiais. Mas não necessariamente.

O provimento de valores espirituais para nossas crianças e nossos adolescentes começa pelo exercício de não sermos indiferentes ao sofrimento alheio. Esse sofrimento geralmente está naqueles que não são alcançados pelo Papai Noel e seus elfos, duendes e renas. E esses irmãos de caminhada não moram longe. Moram, ou passam, bem pertinho de nós.

Aristides Coelho Neto, 22 dez. 2014 

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ENTRE PAPAI NOEL E MENINO JESUS

     Autor: Frei Betto (é escritor e religioso dominicano)

Da última vez que visitei Oslo, reuniam-se na capital norueguesa ministros do turismo de países escandinavos e bálticos para decidir: qual é a terra de Papai-noel?

Ministros da Noruega, Dinamarca, Suécia, Finlândia e Islândia quebravam a cabeça para decidir como evitar propaganda enganosa junto ao público infantil. A criançada queixava-se: alguém mentia. Papai-noel não pode ter nascido — como sugeria a concorrência entre agências de turismo — na Lapônia e na Groenlândia, lugares distintos e distantes um do outro. 

Não conheço o resultado da conferência de Oslo. Espero que, se não chegaram a um acordo, pelos menos a guerra, se vier, seja apenas de travesseiros. Mas é a Finlândia que melhor explora a figura do velho presenteador transportado no trenó puxado por renas. Assinala inclusive a sua terra natal: Rovaniemi, onde o Santa Park é, todo ele, tematizado por Papai-noel, lá denominado Santa Claus. 

Sabemos todos que Papai-noel nasce, de fato, na fantasia das crianças. Acreditei nele até o dia em que me perguntei por que o Paulo, filho da empregada, não recebera tantos presentes de Natal como eu. O velhinho barbudo discrimina os pobres? 

Malgrado tais incongruências, Papai-noel é uma figura lendária, reaviva a criança que trazemos em nós. E disputa a cena com o Menino Jesus, cujo aniversário é o motivo de festa e feriado de 25 de dezembro.

Papai-noel enriquece os correios no período natalino, tantas as cartas que são remetidas a ele. Aliás, basta ir aos Correios e solicitar uma das cartas que crianças remetem ao velhinho barbudo. Com certeza o leitor fará a alegria de uma criança carente.

Não se sabe o dia exato em que Jesus nasceu. Supõem alguns estudiosos que em agosto, talvez no dia 7, entre os anos 6 ou 7 antes de Cristo. Sabe-se que morreu assassinado na cruz no ano 30. Portanto, com a idade de 36 ou 37 anos, e não 33, como se crê. 

Tudo porque o monge Dionísio, que no século 6 calculou a era cristã, errou na data do nascimento de Cristo. 

Até o século 3, o nascimento de Jesus era celebrado a 6 de janeiro. No século seguinte mudou, em muitos países, para 25 de dezembro, dia do solstício de inverno no hemisfério Norte, segundo o calendário juliano. Evocavam-se as festas de épocas remotas em homenagem à ressurreição das divindades solares.  

Os cristãos apropriaram-se da data e rebatizaram a festa, para comemorar o nascimento Daquele que é "a luz do mundo". Para não ficar de fora da festa, os não cristãos paganizaram o evento através da figura de Papai-noel, mais adequado aos interesses comerciais que marcam a data. 

Vivemos hoje num mundo desencantado, porém ansioso de reencantamento. Carecemos de alegorias, mitos, lendas, paradigmas e crenças. O Natal é das raras ocasiões do ano em que nos damos o direito de trocar a razão pela fantasia, o trabalho pela festa, a avareza pela generosidade, centrados na comensalidade e no fervor religioso. 

Pouco importa o lugar em que nasceu Papai-noel. Importa é que o Menino Jesus faça, de novo, presépio em nosso coração, impregnando-o de alegria e amor. Caso contrário, corremos o risco de reduzir o Natal à efusiva mercantilização patrocinada por Papai-noel. Isso é particularmente danoso para a (de)formação religiosa das crianças filhas de famílias cristãs, educadas sem referências bíblicas e práticas espirituais.

Lojas não saciam a nossa sede de Absoluto. Há que empreender uma viagem ao mais íntimo de si mesmo, para encontrar um Outro que nos habita. Esta é, com certeza, uma aventura bem mais fascinante do que ir até a Lapônia.

Contudo, as duas viagens custam caro. Uma, uns tantos dólares. Outra, a coragem de virar-se pelo avesso e despir-se de todo peso que nos impede de voar nas asas do Espírito.

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DEZEMBRO PERIGOSO

     Autor: Walcyr Carrasco (é jornalista, autor de livros, peças teatrais e novelas de televisão)

Noite dessas, um amigo me ligou. Estava confuso, irritado, nervoso:

— Amanhã vou pedir demissão.

Quis saber por quê. Ele me contou que está há anos no emprego, é o braço direito do chefe e, mesmo assim, não teve nenhuma promoção nem aumento nos últimos anos.

— É hora de sair.

Argumentei. Há uma regra imbatível no que se refere a trabalho. Melhor procurar novo emprego já tendo um do que sem nada. O desempregado entra no mercado com muitos pontos a menos. Depois de um tempo sem achar nada, bate um desespero, ele acaba aceitando algo pior do que já tinha. É uma regra de ouro: se estiver insatisfeito com seu emprego, não peça demissão. Procure outro escondido. E bem escondido. Pega muito mal se seu chefe descobrir que você está em fuga.

Durante a conversa, tive uma luz que o convenceu a mudar de atitude.

— É a síndrome de dezembro — eu disse.

Dezembro é o mês em que a gente faz uma avaliação do ano, da vida.

Pois é. Parece ser um mês alegre. Há festas, carinhas sorridentes de Papai Noel. Na virada do ano, um clima de euforia, todos queremos estourar um champanhe na praia, brindar a uma nova vida. Vem a esperança: com a virada do ano, uma nova etapa da vida. Só que não é assim. A vida é contínua, formada por elos de escolhas e acontecimentos que se encadeiam. A gente grita:

—Agora será um ano realmente novo!

E tomamos decisões arriscadas. Casamentos se desfazem porque, de repente, o homem não consegue explicar à namorada que tem de passar o Réveillon com a mulher. E como explicar, se ele já convenceu a outra que seu casamento é uma farsa, que não faz mais sexo com a oficial há anos, que está pronto para separar? A namorada quer uma prova de amor. Prova das boas é passar o Réveillon juntos. O sujeito se contorce. Escolhe. Nem sempre toma a decisão que tomaria a longo prazo.

Pior. No trabalho, qualquer resolução de dezembro ficará adiada até depois do Carnaval. Alguém acha emprego entre Ano-Novo e Carnaval? Este país, lamentavelmente, para. Ficamos em estado de suspensão.

Isso torna dezembro duplamente perigoso. É fácil decidir e desistir. Mas a retomada, a reconstrução... fica para depois! (A não ser que sua proposta seja montar uma oficina de fantasias carnavalescas e, mesmo assim, multidões trabalham nisso há meses!)

Não sou pessimista, mas nunca me assusto quando ouço dizer que em datas festivas há mais suicídios. Dezembro é justamente onde a gente descobre que as decisões do Ano-Novo passado rolaram ladeira abaixo. O que você prometeu a si mesmo? Emagrecer? (Vitória, eu consegui. Mas sou um caso raro. A barriga de meus amigos continua cada vez maior.) Prometeu que encontraria um novo amor e, agora, descobriu que ele fugiu com sua melhor amiga? Prometeu comprar casa própria e não sabe como pagar as parcelas intermediárias durante a construção? Enfim, é agora que você avalia as promessas feitas com a melhor das intenções no fim de ano passado. E descobre que foram palavras escritas na areia, a maioria das vezes.

Vem uma frustração que nem te conto. Dói fundo. Não há nada a fazer a respeito, porque decisões férreas de Ano-Novo são o resultado das avaliações de dezembro. Mas é preciso conviver com a realidade. Não há muito dinheiro para os presentes, a viagem não vai rolar. Conheço um casal que ia todo ano para Punta Del Leste. Neste ano, até tem amigos dispostos a oferecer hospedagem, mas não há dinheiro para as passagens. Sofrem.

Não quero dizer que o ano tenha sido ruim para todo mundo, por favor! Mesmo que você tenha uma vida radiosa, feliz, em dezembro corre o risco de olhar a parte pior da história. A gente é assim: o que acontece de bom, anotamos em preto e branco; de ruim, gritamos aos olhos e ao mundo como se fosse escrito em neon. Em dezembro, lembro o que não consegui. E o projeto de estudar hebraico bíblico? (Sempre tive vontade.) O livro ainda vive embaixo do travesseiro? A vontade de ver mais os amigos? Intensificar as relações? Meu blog, eu não ia fazer um blog?

O duro é que não adianta tomar nenhuma iniciativa agora. Vem Natal, depois Réveillon. Por melhor que seja o novo plano de vida, a gente adia. Até regime. Quem começa regime no Natal? Fica a sensação de frustração, do que a gente queria fazer e não fez. E que não pode começar imediatamente. Dezembro é perigoso. É o mês em que a gente festeja, enquanto chora pela vida.

(Revista Época 864, 22 dez. 2014, p. 83)

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CADÊ O NATAL?

Autor: Frei Betto  (é escritor e religioso dominicano)

Cadê o Natal como celebração do nascimento de Jesus? Cadê o presépio na sala, a leitura bíblica em família, as crianças catequizadas pelo significado da festa? Cadê a Missa do Galo, que inspirou um dos mais belos contos de Machado de Assis?

Serei saudosista? Talvez, sobretudo considerando que a pós-modernidade troca o sólido pelo gasoso, o emblemático pelo mercantil, a irrupção do sentido pela compulsão consumista.

Eis o sistema, com a sua força incontida de banalizar até mesmo a mais bela festa cristã. Na contramão de Jesus, vamos escorraçando o filho de Deus do espaço religioso e introduzindo as mesas dos cambistas que comercializam os produtos do Papai Noel.

O velho barbudo pode ser encantador para as crianças, devido à massificação cultural que as induz a preferir Coca-Cola a leite. Contudo, haverá mais mistério no ancião que desce pela chaminé ou na criança que é a própria presença de Deus entre nós?

Aliás, ao ser inventado, Papai Noel vestia verde. O vermelho foi mercadologicamente imposto pelo mais consumido refrigerante do mundo. Porém, nada tem a ver com a nossa realidade o velhinho que veio do frio.

Somos um país tropical, jamais andamos de trenó e sequer em nossos zoológicos há renas. Mas, como despertar uma nação secularmente colonizada? Como livrar a cabeça do capacete publicitário? Basta conferir o número de lares que trocam a boa e potável água do filtro de barro pela garrafa pet do supermercado, contendo líquido de salubridade duvidosa.

Minha mãe, mestra em culinária, contava que, outrora, as madames cariocas, com a cabeça feita pela Belle Époque, pediam no açougue "lombinho francês". E muitas acreditavam que aquele naco de carne de porco havia cruzado o Atlântico para agradar o paladar refinado de quem, com certeza, achava uma porcaria o porco daqui...

O grupo de oração de São Paulo, do qual participo, decidiu confraternizar-se com presentes zero. Queremos presenças na celebração. O grupo de Belo Horizonte instituiu o "amigo culto" (e não oculto): sorteada a pessoa, ela recita uma poesia, entoa um canto, narra uma fábula ou conta um "causo" que faça bem à alma.

Meus amigos Cláudia e Jorge decidiram que, neste ano, nada de shopping! Levarão as crianças ao hospital pediátrico, para que brinquem com os pequenos enfermos.

Isto, sim, é encontrar Jesus, como reza o evangelho da festa de Cristo Rei: "Estive enfermo e me visitaste" (Mateus 25, 36).

Isso é muito mais do que cultuar Jesus no presépio, em imagem de gesso. É encontrá-lo vivo naqueles com os quais ele se identificou.

Mas há quem prefira entupir as crianças de Papai Noel, "educá-las" centradas no shopping, incentivá-las a escrever cartinhas com requintados pedidos. Tomara que, mais tarde, não se queixem dos adolescentes consumistas, escravos monoglotas dos celulares, indiferentes ao sofrimento alheio e desprovidos de espiritualidade.

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UM PAPAI NOEL VERDE E AMARELO?

Autor: Eugênio Bucci (é jornalista e professor da ESPM e da ECA-USP)

A fantasia de Papai Noel, você sabe, é como o verbo "bimbalhar". Só tem emprego no Natal. Repare que os sinos só "bimbalham" nas festas natalinas; no resto do ano, eles simplesmente "tocam", no máximo "ressoam". Quando muito literários, "dobram". "Tocar", "ressoar" e "dobrar" são verbos menos cintilantes. Bimbalhar não. Bimbalhar é gongórico, saltitante, borbulhante, parece traduzir melhor esse frenesi de "jingle bells" que toma conta das ruas mais movimentadas e das casas de família, à medida que dezembro descamba para o peru, o espumante e as férias coletivas. É uma tradição idiomática: no Natal, os sinos bimbalham. Não só eles. Além dos sinos, todos se enfeitam e também saem por aí bimbalhando vivamente.

É isso mesmo que você pensou: o verbo bimbalhar tem sentidos nem tão católicos assim. É Natal, bimbalham as abelhas, bimbalham as estrelas do céu, bimbalham os corpos. (A propósito, o substantivo "bimbalho" ao existe. Deveríamos inventá-lo quanto antes.) Entre todos, quem bimbalha mais, e bimbalha sem parar, são as lojas de quinquilharias. No resto do ano, os consumidores se açoitam uns aos outros. No Natal, vão às compras na ilusão de que, com um presentinho, dirão que têm amor a quem maltratam. Eis que bimbalham as caixas registradoras.

Dito isso, chega de bimbalho. Voltemos quanto antes à fantasia de Papai Noel. Ela é vermelha, como você já deve ter notado. Vermelha como um caminhão de bombeiros. Intensamente vermelha, vermelha mesmo, vermelha como o logotipo daquela bebida gasosa e recreativa cujo nome começa com "Coca" e termina com "Cola — nos anos 30 do século passado, ela cuidou de massificar a rubra figura do bom velhinho em suas campanhas publicitárias nos Estados Unidos. Papai Noel, o vermelho de barbas brancas, como Karl Marx, deve sua existência a uma propaganda de refrigerante. Sem a publicidade, nunca teria ficado mais famoso do que Jesus Cristo, e o consumismo natalino não teria virado a religião que virou. A humanidade inteira acredita que a união das famílias, a reconciliação dos desafetos, a harmonia conjugal,  a paz entre as nações e a solidariedade são mercadorias que a gente pode mandar embrulhar para presente.

Traduzindo: a humanidade inteira acredita em Papai Noel. As criancinhas são quem acredita menos. Apenas concedem que exista, em algum lugar da casa, um bom espírito que se realiza em distribuir alegria desinteressada a quem ainda não conheceu a ambição material e o desejo de matar o semelhante. É só nisso que elas acreditam. Os adultos acreditam em fantasias mais mirabolantes. Acreditam que podem tapear as crianças. Acreditam que uma camisa de algodão egípcio, um telefone celular que conta as batidas do coração ou uma passagem de primeira classe  podem amolecer o coração daquele saco de pancadas ali ao lado. Acreditam que, se ganharam de presente uma traquitana de preço tão alto, é porque são amados e desejados com ardor. Os adultos acreditam em cobrar dívidas amorosas na forma de regalos arrematados em dez vezes no cartão. Acreditam que presentear é como pagar promessa em prestações. Adultos acreditam em Papai Noel como um embuste que funciona. Adultos acreditam em Papai Noel como acreditam no dinheiro. São muito mais crédulos que as criancinhas. Elas apenas enxergam no sujeito fantasiado de vermelho uma verdade que não existe nos mentirosos que a paparicam.

Bimbalhando feito loco,  o Papai Noel dá tungadas em todo mundo. Não poupa ninguém. Das miseráveis ilusões dos adultos espertos e das inocentes esperanças infantis, Papai Noel  extrai os cifrões que inflarão o ego do mercado. Só quem pode ganhar algum lucro com ele é o comerciante e, se o comerciante ganhar, o ministro da Fazenda ficará contente, sorrindo feito criança. O ministro da Fazenda acredita em Papai Noel porque acredita em números. Acredita que Papai Noel não é vermelho, mas verde e amarelo. Acredita que Papai Noel aquecerá "nossa" economia. Acredita que, no fim, todos aqueles presentes que depois não caberão no guarda-roupa, as caixas fechadas de panetone que atravessarão o prazo de validade e as pilhas elétricas que enferrujarão nos brinquedos terão ajudado pelo menos a espantar o fantasma da recessão. É pouco, é ridículo, é uma alucinação macroeconômica — e é tudo o que o governo pediu para Papai Noel.

Assim sendo, Feliz Natal para o Brasil. E que o Ano Novo seja próspero, mas próspero de verdade, próspero no sentido pecuniário da palavra.

(Revista Época 864, 22 dez. 2014, p.18)

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