TEXTOS DO AUTOR

Revisores, esses seres invisíveis

Rubem Alves nos fala da característica dos revisores — olhos de lince para os erros, esquecendo-se por vezes da essência. Rubem relata em "Chopin é polonês" algumas experiências desastrosas com revisores.

Chopin é Polonês... 

 Revisores são seres invisíveis – o nome deles nunca aparece – de que se valem jornais e editoras, para corrigir os deslizes dos escritores. Porque os escritores, freqüentemente, são seres descuidados e distraídos que desrespeitam as leis fundamentais da gramática. Os revisores vão percorrendo com seus olhos atentos e minuciosos o texto do autor para livrá-lo de equívocos embaraçosos. Eu mesmo, por muito tempo, tive como revisor voluntário dos meus textos um erudito da língua que, sem ser funcionário de um jornal, sem ter, portanto, nenhuma obrigação profissional, enviava-me periodicamente, por puro amor à língua, relatórios detalhados dos meus erros. Desse revisor voluntário tenho apenas uma queixa: ele nunca disse uma só palavra sobre a substância mesma dos meus artigos. Não lhe importavam as coisas que eu escrevia. Importava-lhe se eu as escrevia com as palavras certas. Sobre ele eu diria o que disse o Patativa do Assaré: “Mais vale escrever a coisa certa com as palavras erradas que escrever a coisa errada com as palavras certas...”. Até lhe dediquei uma pequena parábola. Eu, convidando meus amigos para tomar uma sopa que eu mesmo faço. Eles vêm, tomam a sopa e gostam. Mas um intruso, não convidado, toma a minha sopa, nada diz sobre a sopa mas reclama que a tigela estava lascada...

Tenho tido experiências com revisores atentos, sensíveis, competentes que não só corrigem meus erros como também me fazem sugestões de como melhorar o meu estilo. Sou-lhes por isso, muito grato. Mas tenho tido também algumas experiências desastrosas. E isso porque os revisores têm um poder terrível. Basta que mudem uma simples palavra...

Saramago escreveu um livro sobre o feito de um revisor cansado de sua função de apenas revisor. Resolveu interferir no texto. No lugar onde o autor havia escrito um “sim” ele resolveu deletar o “sim” e substituí-lo por um “não”. O resultado foi que a história do cerco de Lisboa – esse era o tema do livro – teve de ser completamente re-escrita. Os revisores são seres invisíveis muito perigosos. Há de se estar atento.

Houve um livro que escrevi todo ele baseado na distinção entre “história” e “estória”, distinção que os gramáticos desconhecem por saber muito sobre letras e sílabas e pouco sobre sentidos. Resolveram, por conta própria, eliminar do dicionário a grafia “estória”. Tudo agora é “história”. Mas Guimarães Rosa sabe que isso está errado e até escreveu “A estória não quer se tornar história”. São duas coisas diferentes. História é o tempo onde as coisas acontecidas não acontecem mais. Estória é o tempo onde coisas não acontecidas acontecem sempre. Pois o revisor do meu livro, mais atento ao dicionário que ao sentido, eliminou todas as “estórias”, o resultado sendo que o livro ficou totalmente sem sentido. O revisor disse que abacaxis e pitangas eram a mesma coisa. Esse mesmo revisor achou por bem corrigir minha tradução de um verso de Eliot. “The inner freedom from the practical desire...” Minha tradução: “A liberdade interior do desejo prático...”. Coisa de velhice: estamos livres da compulsão de fazer coisas práticas. Podemos nos entregar à vagabundagem. Pois o dito revisor, certamente movido por sua ideologia de esquerda, não podia imaginar que essa liberdade da compulsão do fazer fosse coisa decente. Alterou então a minha tradução para “a liberdade interior para o desejo prático...”. Assim, na versão do revisor, todo mundo ficou condenado à compulsão do fazer. Culpa minha. Acreditei no revisor. Não conferi. O texto saiu do jeito como ele o escreveu. Um outro revisor, numa transcrição literal que fiz de uma fala do Riobaldo, corrigiu o português do Riobaldo que ficou falando como se fosse uma professora de português. Ainda bem que eu vi.

Ontem levei um susto que me deixou sem dormir. Comprei a Folha de S. Paulo no aeroporto de Belo Horizonte. Fui ao suplemento “Sinapse”, onde apareceu o meu artigo “Ensinar a Tristeza”. Fui lendo até que fui apunhalado na minha honra, pelo revisor. Está escrito: “Não consegue ouvir a beleza dos noturnos do músico francês Frédéric Chopin (1810-1849)”. Fiquei gelado. Em um segundo, por culpa do revisor, minha reputação estava em frangalhos. Porque o que o revisor põe sem assinar o nome fica sendo como do autor. Está lá, como eu tendo escrito: “o músico francês Frédéric Chopin (1810-1849)”. Chopin é polonês. Todo mundo sabe. O nome de suas peças mais conhecidas revelam a sua pátria: “polonaises”. E o pior, essa expressão “o músico francês”. Eu, na melhor das hipóteses, escreveria “compositor polonês”. Mas nem isso eu escreveria. Teria sentido que eu, escrevendo sobre Einstein, colocasse entre parêntesis “cientista alemão”? Ninguém se refere a Einstein como “cientista”. Einstein é Einstein. Só. É totalmente descabido explicar, num parêntesis, quem foi ele. O seu nome é o bastante. Imaginem que eu escrevesse “Shakespeare, escritor inglês...”.

Agora estou à espera de infinitos e-mails fazendo gozação da minha incultura pianística. Acho insuportável imaginar o que meus leitores estarão pensando de mim! Peço perdão a Chopin por havê-lo feito francês, involuntariamente. Como desagravo vou escutar a Polonaise op. 53...

Rubem Alves, 72. A Nossa Cultura Editora está lançando uma série de áudio livros com textos meus. Foi uma cega que deu a idéia. E também estórias infantis.

http://www.rubemalves.com.br/chopin.htm

Comentários (3)

Voltar