TEXTOS DO AUTOR

CURSAR LETRAS RESOLVE MESMO?

Dona Deise achava que pós-graduação é condição suficiente para se escrever bem. Ela estava redondamente enganada. E acho que ainda está. Até hoje.

“[...] ensinar a língua e ensinar a gramática 
são  duas  coisas distintas [...]”

 

As horas passavam morosas, intermináveis.  A tensão me provocava dor na coluna, como sempre.  E eu não acreditava que vivia aquela situação – a de ter que provar por a-mais-bê cada observação que eu havia feito no texto da equipe de dona Deise, a coordenadora tanto do projeto como daquela edição.
Eu era o revisor.  Minhas correções normais eram a lápis. As que envolviam erros crassos, eu as fizera em vermelho. Crítica acirrada. Exemplo típico de inconformação, já que os autores eram professores e até mesmo doutores.  Coisas próprias da minha petulância e rigor, quem sabe exacerbado, quanto ao nosso Português.

Entre uma estocada e outra lá na lombar, eu dizia do hífen do “tão-somente”.  Da improcedência da utilização do “enquanto ciência, a matéria era pertinente”.  Do modismo condenável do “junto ao”, do “juntamente com”, do “elencar”. Embaralhava-me no risco vermelho que eu próprio fizera no “oportunizar”. 

Naquela noite, como usualmente fazia, eu carregava na pasta preta de lona apenas meus manuais de redação.  Gramáticas não cabiam na pasta (e para dizer a verdade, eu nunca soube manuseá-las como manda o figurino).

Dicionários, não os tinha no momento. “Oportunizar” não aparecia nem no meu Aurélio doméstico, nem no Michaelis, nem no dicionário da Mirador.  Mas estaria firme e forte – o maldito – em outros dicionários?  A dúvida era cruel e dona Deise mais ainda.

Ela, enfática, pediu que permanecesse quase tudo que eu criticara.  O auge da dor na coluna veio quando, diante da minha flagrante praticidade em detrimento da teoria, ela perguntou: “o senhor tem curso de Letras?”

A pressão subiu e passei a ouvir um zumbido nos dois ouvidos.  Respirei, engoli, não em seco, pois havia um copo d’água à minha frente.  Afirmei, então, com uma calma que eu não tinha: “para se escrever corretamente, não há necessidade de curso de Letras.  A senhora já fez uma pesquisa quanto à formação da maioria dos bons escritores?”

Dona Deise olhou-me com olhos de indisfarçável desconfiança.  Às 23h30 nos despedimos.  Amáveis, como gente civilizada se despede.  No fundo cada um sabia – eu não voltaria para outra batalha sem argumentos, ou sem um carrinho de supermercado cheio de livros.  E ela, nem pensar, me chamaria de novo.

Terminei a revisão do texto inteiro no dia seguinte, já com outro enfoque, mais permissivo, embora a contragosto, a não ser no texto do professor Honório.  O gajo era coordenador de pós-graduação.  A ele que dona Deise se  referira quando apontei erros nas remissões que (ele) fizera às referências bibliográficas: “o professor Honório é doutor, ele sabe o que está fazendo”.

Rancoroso, sob os efeitos da noite anterior, “arrebentei”, desta vez, só o texto do Doutor Honório.  Eram períodos longos, com repetições, recheados de idéias confusas.  Vírgulas proibidas foram assinaladas com a bic vermelha.  Modismos, não perdoei.  Sistematização incorreta, abominei, ressaltei, grifei.  Onde exigia copidesque – revisão não é copidesque –, apenas um grande ponto de interrogação.  A regra agora era não entregar o ouro aos bandidos. Mas voltar lá, nunca mais.  Preciosismo meu, esse de querer discutir com “os pais da criança”, com os autores do texto.  Bem-feito, a idéia tinha sido minha...  Agora, melindrado, abatido, eu queria aprender teoria.

Abri o Correio Braziliense. Na página 10, uma propaganda: “Língua Portuguesa – Curso de Especialização Lato Sensu”.  E disse de mim para comigo: “embarco nessa amanhã mesmo.  O  preço?  Sei lá, a gente se vira.”

Aristides Coelho Neto (31.8.2001, em prova de seleção)

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