TEXTOS DO AUTOR

DÚVIDAS CRUÉIS: SOFRO E AJO, OU SÓ FICO NO SUFRÁGIO?

Como agir quando a situação pede que se cumpra um dever cidadão? Ser o agente, quando ninguém se apresenta? Evitar melindrar alguém que, pelas suas atitudes, pode não merecer consideração?

ATO STACATTO DESACATO 1

E uma pessoa deixa que seus cachorros fujam pelo portão, às vezes aberto às vezes mal fechado. E quando você passa pela frente da casa com seu próprio cão, devidamente contido com uma guia, é atacado.

E essa aporrinhação dura quase quatro meses.  

E você reclama.

E nada!

E isso leva você a registrar ocorrência por uma dezena de vezes. 

E você passa a sair com câmera fotográfica para registrar os flagrantes. 

E você passa a ligar para sua própria casa, pedindo que alguém venha até você para ajudar a prender os cachorros do vizinho para você passar em frente, na volta da caminhada.

E o policial vem constatar o absurdo.

E não desce do carro, claro, não é bobo, o animal está solto.

E o assunto sai do âmbito da delegacia.

E vai para o tribunal de pequenas causas.

E chega o momento de uma audiência de conciliação.

E na conciliação a dona dos fujões, tomada de insensibilidade, não vê um ilícito no caso. 

E a gente não entende o que é "conciliação" nessa hora.

E, pasme!, ameaça processar você, tão certinho e seguidor dos preceitos legais, provocador contumaz de cachorros...

E o caso prossegue. Não há quem faça conciliação desse jeito.  

E lá estão os dois perante um juiz, após sete meses do início dos constrangimentos — um incomodado, uma insensível.

E a vizinha, senhora de si, mal cumprimenta. Você, delator assumido. Ela, soberba vítima.

E o juiz fala em prestação de serviço à comunidade.

E fala em antecedentes.

E fala no atenuante da primariedade.

E a vizinha se descontrola.

E acuada, com medo, pede desculpas. 

E toma uma atitude: perante o juiz diz que vai dar os cachorros, a despeito de os quatro filhos gostarem muito.

E você pensa — mais uma vez ela se equivoca.

E você raciocina — pede desculpas por sentir-se agora acuada, não aprende a lição.

E você deixa fluir. 

E ela é punida — serviços à comunidade. 

E mesmo assim você não sabe se houve aprendizado...

E você fica pensando, pensando... se sua atitude foi cidadã mas não cristã.

 

ATO STACATTO DESACATO 2

Existe uma tendência de ocupação de área pública em determinados locais no Distrito Federal. E a alegação, muitas vezes, de quem se apropria da área pública é a de conservá-la melhor do que o governo faria.

E você depara com pessoas que avançam mais sobre a terra pública.

E com outras que avançam menos, umas menos gananciosas, outras mais.

Suponha que você é um agente público e tem de construir uma calçada. Larga , bem feita. Para os pedestres passarem, pessoas comuns ou pessoas portadoras de algum tipo de deficiência.

E num determinado momento você depara numa esquina com obstruções. Placas de sinalização, postes mal posicionados. 

E você pede ao proprietário da casa recue a cerca que invadiu demais a área pública, para que a calçada siga seu curso. 

E conversa vai, conversa vem, e você não é atendido.

E você toma a decisão de conversar uma última vez. 

E o proprietário se julga dono da terra pública. Quem sabe avançaria tanto a sua cerca que os pedestres naquele local teriam de passar de lado, girando sobre os próprios pés.

E nesse último colóquio, você é tachado de incompetente pelo proprietário. Você  é um idiota. Só pediu verbalmente, nunca por escrito. 

E não adianta você dizer que melhor seria sempre que as pessoas conversassem.

E o proprietário ameaça processar você, pasme! 

E ele não entendeu nada!

E você se retira. 

E traz um fiscal.

E é feita a notificação, que dá início a um trâmite que leva a multa e outros desdobramentos.

E você fica pensando, pensando... se sua atitude foi anti-cristã, cidadã ou profissional.

 

ATO STACATTO DESACATO 3

Uma pessoa  de carreira no governo, concursada portanto, não se acerta com chefe algum, por ser pouco afeita ao trabalho, por faltar demais. E por deixar claro que não pretende fazer carreira, ser admirada e respeitada como profissional, quer apenas se aposentar, afirma sem rodeios. E ainda falta tempo para isso.

E todos reclamam dela. Mas ninguém quer dar continuidade ao caso da forma correta.

E as fichas de avaliação são positivas.

E ninguém carimba "falta" em sua folha de ponto, com receio de prejudicá-la.

E hoje eu refletia...

 

A pessoa mais certa parece ser a pessoa relapsa, por incrível que pareça. Certa, porque percebeu que a sua atitude relapsa habitual é acobertada. Então, age dentro de uma lógica. Bem particular, convenhamos, mas uma lógica, um raciocínio cartesiano. Como ninguém age como deveria, quem está errado, na realidade, são os seus chefes. Que se alternam. E se omitem. Ninguém quer ser o agente da demissão. Por medo, quem sabe por falta de noções de cidadania.

O amigo Veras Neto, médico e filósofo prático sem diploma, diz que nesses casos só são duas alternativas para não se conseguir demitir uma pessoa — falta de competência no seu treinamento, ou falta de determinação para despedi-la.

 

Escrevi um artigo certa vez chamado Cidadão  cristão. Está no meu site em "Coisas do espírito". Lá eu manifesto a indecisão de uma pessoa comum entre ser cidadão e ser cristão. Às vezes parece que a gente chega a entender direitinho como agir em situações delicadas em que a dúvida eclode. Às vezes parece que o caso é intrincado demais para o nosso entendimento. E tudo volta à estaca zero na nossa cabecinha.

Não seria muito interessante, nos momentos de dúvida, ponderarmos se mais vale o interesse individual ou o público? Análise custo-benefício...

Resta alguma suspeita de  que o serviço público deveria ser saneado? e que é um bem que se faz à coletividade desligar da máquina pública milhares de pessoas nessa situação? que pouco fazem e que se sustentam com o dinheiro de nós todos?   

E volta a pergunta: "Cair na real e tomar atitude seria mesmo considerada como anti-cristã?". Ou não cabe aqui essa reflexão?

Foi nessa hora que a amiga Falcone me indagou, em conversa informal: "Mas o que é a atitude cristã nesse caso?". Respondi que é perdoar, relevar, entender as deficiências dos outros.  Cientes ainda de que se a justiça dos homens não acontece, a divina pode tardar, mas não falta. E você pensa, pensa... até onde vai o nosso dever?

E vamos seguindo, atitudes ora mosaicas, ora cristãs, ora nem uma coisa nem outra. Mas sabemos que Moisés agia de acordo com o nível de compreensão da humanidade de então.  Para muitos, esse nível ainda é o mesmo de há 4.300 anos passados.

E ressalte-se: falar em nível de compreensão deixa margem a querer dizer do meu. Ou também do outro. E seguimos, matutando, matutando... Isto é crônica, ensaio, artigo ou apenas um desabafo muito mal escrito?

Aristides Coelho Neto, 12.4.2008

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