LYON, YVERDON, PARIS

Tudo começou em Lyon. Era 1804. No entanto, o palco dos grandes acontecimentos relacionados diretamente à Doutrina Espírita foi Paris, a capital do mundo à época.

"É uma viagem, pelas mesmas calçadas, respirando as mesmas esquinas, as mesmas janelas, dos vidros, dos livros, da biblioteca, da memória, memória de Rivail, de Kardec, de Lyon, de Yverdon, de Paris. Uma outra história. Procurei te encontrar, entender, compreender. Olhei o teu olhar, tela, clics solitários, você nascia no ruído do pensamento.  Eu te vi, te observei, procurei passar aos outros aquilo que encontrei; é uma parte, a que me cabe."

Edson Audi (em Vida e Obra de Allan Kardec. Lachâtre, 1999)

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Paris é a cidade que sempre quis conhecer. E a conheci — ou reconheci? — em outubro de 2010.

Dentre meus anseios de visitar lugares de que tanto ouvi falar, levei para a Cidade Luz um livro de Edson Audi sobre Allan Kardec. E também os endereços que dizem da sua biografia. Onde morou, onde trabalhou, por onde andou Kardec. E minha marca-texto traçou caminhos coloridos por sobre o mapa da cidade, destacando  as ruas Vaugirard, Sèvres, Harpe, Lille, Tiquetonne, Grange-Batelière, Rochechouart, Martyrs; a Villa de Ségur;  a passagem Sainte Anne;  as galerias d’Orléans, Valois, Montpensier, no Palais Royal, este ali pertinho do Louvre. A mesma marca-texto circulava também o cemitério Père-Lachaise, última morada física do mestre lionês.

Mapa de Paris na mão, andei por muitos lugares costurados por Kardec em seu cotidiano marcado pelo dinamismo, na sua longa estada em Paris. Essa cidade foi o palco de grandes acontecimentos que marcaram o desenvolvimento da cultura, da filosofia, da arte, do culto à liberdade. E Paris trouxe também ao mundo a codificação de uma doutrina que traçaria novos rumos para a humanidade, principalmente a partir d’O Livro dos Espíritos, de 1857.

Mas como seria a Paris daqueles tempos? Como seria a vida de Kardec na intimidade? O que vão ver são fragmentos baseados no que existe sobre o insigne professor Hippolyte Léon Denizard Rivail, também benfeitor memorável, o codificador da Doutrina Espírita, senhor Allan Kardec.

Muito do que vão ler é referenciado. Outro tanto é o que muito bem poderia ter acontecido. E o leitor perceberá facilmente quando as inferências são fruto da imaginação. Imaginação porém balizada pelo que conhecemos de Allan Kardec.

Sim, eu quis perscrutar os caminhos de Rivail, na sensação boa de pisar o mesmo chão que ele pisou em Paris. No entanto, melhor seria que pudéssemos todos percorrer os caminhos da sua persistência, do seu empenho, do seu rigorismo, na busca da Verdade. 

E quem sabe descobrir, no seu exemplo de vida, que vida é trabalho — Kardec morreu em plena atividade, tombando sobre um exemplar da revista que era fruto de seu trabalho. Vale registrar ainda que vida é ainda mais plena e abundante quando o trabalho é para o bem daqueles que nos cercam, inspirado, assim, na fonte inesgotável do divino Mestre Jesus. Esse foi o legado de Kardec. Tudo começou em Lyon. Mas o palco dos grandes acontecimentos relacionados diretamente à Doutrina Espírita foi Paris.

Aristides Coelho Neto,  29.11.2010

Autores consultados — Edson Audi, Henri Sausse, Carlos Antonio Fragoso Guimarães, Allan Kardec, Chico Xavier, Geraldo Lemos Neto, Jorge Damas Martins, Stenio Monteiro de Barros, Carlos Antonio Fragoso Guimarães, José Maurício Kimus Dias, Paulo da Silva Neto Sobrinho. Silvino Canuto Abreu.

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FRAGMENTO 1

Hippolyte Léon Denizard Rivail nasceu em Lyon, em 3 de outubro de 1804. Naquele ano, Napoleão Bonaparte, aos 35 anos, tornava-se imperador dos franceses.

A família Rivail residia em Bourg de L’Ain (ou Bourg-en-Bresse). No entanto, Jean Baptiste-Antoine Rivail e sua esposa, Jeanne Duhamel, estavam provisoriamente em Lyon, distante 60 km de sua cidade. A senhora Duhamel, quando do parto de Hippolyte, se submetia a um tratamento num estabelecimento de águas minerais, situado na rua Sala, nº 74. A terapia era constituída de banhos, duchas, vapor, sem contar a assistência médica.

Havia quartos para os pacientes se hospedarem. Foi num desses quartos que Jeanne deu à luz o menino que teria um trabalho árduo pela frente — o de codificar a Doutrina Espírita.  Quem fez o parto foi o doutor Pierre Rodamel.

 

1804, outubro

“[...] Jean Baptiste se aproximou pé ante pé. A janela entreaberta deixava que um pequeno raio de luz penetrasse o quarto, inundando o recinto de vida e energia. Estava menos frio.  O sol trazia novo alento após a chuva da véspera. E os galos da redondeza não mais se ocupavam de anunciar a chegada do novo dia.   

— Jeanne, deixe-o dormir enquanto o carreteiro carrega nosso baú. Acomode-se no canto esquerdo do banco. O sol estará pela direita. Eu pego o bebê por último. Já me despedi do doutor Rodamel. E acho que não esqueci de nenhum funcionário.

— Já os agradeci a todos ontem mesmo, querido, sabendo que íamos partir cedo para Bourg. Jean, eles perguntaram por que não nos transferimos para Lyon. Eu falei das nossas raízes... — disse Jeanne, que demonstrava estar bem disposta naquela manhã. — Lembrou-se das frutas?

— Estão na diligência. Aliás, consegui uma de quatro cavalos. Hippolyte merece, não é mesmo? Ele vai ser um grande homem — afirmou Jean Baptiste, com a segurança de um magistrado, em tom enternecido e profético ao mesmo tempo. [...]”

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FRAGMENTO 2

Quando Hippolyte L. D. Rivail nasceu, Lyon tinha perto de 100 mil habitantes. Paris tinha quase 600 mil.  Lyon hoje é a terceira cidade em população da França. Foi fundada em 43 a.C. e, na condição de antiga colônia romana na Gália, chamava-se Lugdunum.

Teria Lyon abrigado Hippolyte nos seus primeiros anos de vida? e na sua iniciação escolar?  Há divergências. Prefiro a tese de que ele não tenha morado em Lyon, apenas nascido lá.

Ele afirmaria, na Revista Espírita de julho de 1862: “Jamais morei em Lyon”.  Compactuo com as informações de Jorge Damas Martins e Stenio M. de Barros (in Allan Kardec – Análise de documentos biográficos) e devo concluir que Rivail cursou as primeiras letras em Bourg de l’Ain, cidade de seus pais.

Em 1815, porém, de 10 para 11 anos de idade, Hippolyte é enviado pelos pais para Yverdon, na Suíça.  Iniciava-se então o contato profícuo e marcante com J. H. Pestalozzi. Ali, no Instituto Pestalozzi,  Hippolyte Denizard definiria em definitivo as bases da sua formação de educador.  O mestre Pestalozzi, que tanto influenciou o ensino do mundo ocidental,  estaria para Kardec como Rousseau esteve para Pestalozzi.

 
Sua bandeira era a verdade, o sentimento, o bom senso, o raciocínio lógico, a intuição como fundamento da instrução, dentre outras. Dentre seis premissas que constituiriam o edifício da filosofia de ensino de Pestalozzi — que versam sobre intuição e linguagem, sobre evitar o julgamento e a crítica, a exposição dogmática, exaltando sempre o respeito à individualidade do aluno —, destaca-se esta: “As relações entre mestre e aluno, sobretudo no que concerne à disciplina, devem ser fundadas no amor e por ele governadas”.

Que outro mestre teria tal importância para a formação de Hippolyte León Denizard Rivail, aquele para quem o Pai Criador reservou a missão de futuro codificador do Espiritismo?    

Pestalozzi morreria já octogenário em 1827, depois de vinte anos de atividades no Instituto. Na inscrição em seu túmulo fica evidente a sua generosidade e sua forma caridosa de se relacionar com quem era visitado pela ignorância e pelo sofrimento. Adjetivos como “educador da Humanidade, homem, cristão, cidadão” estão impressos na lápide com vistas à posteridade, numa exaltação merecida à sua memória.

Quando começou o ano de 1823, Rivail estaria radicado em Paris, atuando como professor e tradutor, morando na rua de La Harpe, 117.  Em dezembro lançaria seu primeiro livro sobre Aritmética.  Assinava H. L. D. Rivail.

 

Outono de 1822

“[...] Pestalozzi, nos seus 76 anos, sempre dinâmico, idealista, naquela manhã parecia um pouco abatido. Quando Rivail chegou, o professor se achava perto da janela. Observava um corvo agitado que assentara no peitoril. Ao fundo e embaixo viam-se os alunos que conversavam animadamente no pátio do Instituto. 

O distinto rapaz de 18 anos, educadamente, deu três batidas na porta já aberta, antes entrar.

— Venha, venha — disse Pestalozzi, abaixando a cabeça para olhar por sobre os óculos seu altivo aluno e colaborador, enquanto se dirigia à mesa redonda de madeira escura, que com os demais móveis conferia à sala um toque acolhedor. Uma bandeja com chá, a esperar que os dois se servissem...

— Queria falar comigo, professor? — perguntou Rivail, esboçando um sorriso jovial,  esperando o sinal para se sentar.

— Acho que está chegando a hora de falarmos de seu futuro. Estudos secundários terminados com brilhantismo, meu querido e dedicado colaborador... tanto que tem me substituído em tantas oportunidades... você sabe que o tenho como um filho dileto...

— Sei disso, professor. O carinho é recíproco. E serei eternamente grato pelas noções de vida que me foram fornecidas nesta escola abençoada.

— Eu gostaria que ficasse por perto mesmo após concluir seu bacharelado... mas não tenho o direito de lhe rogar isso. Ademais, uma ponte deve ter seus pilares espaçados. De nada adianta juntá-los.  Sei que em Paris você vai ser um pilar das nossas ideias. Você se revelou, nestes anos férteis que passamos juntos, dotado da sensibilidade e do idealismo necessários e suficientes para disseminar a nossa metodologia. Interiorizou os conceitos de que o conhecimento não é propriamente adquirido, mas sim desenvolvido, pois cada ser humano já nasce com a tendência espontânea da natureza de seu próprio desenvolvimento. Cada ser somente precisa do estímulo do educador, que deve atentar  sempre para os cuidados com a educação moral e espiritual.  

— Tenho absoluta convicção disso, professor — afirmou Rivail. Seu olhar denunciava um profundo respeito pelo mestre, como se quisesse sempre gravar indelevelmente tudo o que vinha dele, como se tais momentos fossem únicos.

— Tenho notado em você desenvoltura tanto para humanidades como para ciências. Já assisti a suas aulas sobre Astronomia e sobre matérias fundamentais para a Medicina. O que tem em mente, meu caro Rivail?

— Volto-me agora tão somente para Ciências e Letras. Em Paris, para o sustento, penso em lecionar e aproveitar meus conhecimentos como tradutor — falou com segurança o jovem. — E, claro, estudar sempre.

— Deus há de ampará-lo no seu intento. Mesmo diante das dificuldades que se avolumam para a nossa instituição, estaremos sempre de portas abertas para você. Quero que me escreva sempre que puder, dando notícias de suas incursões por esse  vasto mundo da educação. Espero de você que sempre se lembre que a escola pode fazer o cidadão, mas somente o lar pode edificar o homem. Humanistas que somos temos sempre de investir na família, acolhendo nossos alunos no respeito à sua individualidade.  Você conhece todos os princípios... há de fazer bom uso deles. [...]”

Nota – A primeira obra de Rivail viria logo mais, em 1824, ele com 20 anos apenas — um trabalho sobre aritmética. Viriam muitas outras obras, sobre geometria, educação pública, pedagogia, ortografia, gramática. Por volta de 1854, Rivail “passou a se interessar mais pelos problemas sociais. Ao mesmo tempo sua curiosidade era despertada para os fenômenos ‘insólitos’, que se produziam e eram observados na América, na Inglaterra e na Alemanha. A carreira do prof. Rivail estava. chegando ao fim”. Allan Kardec estava prestes a surgir.

Aristides Coelho Neto, 29.11.2010

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