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FUI EU QUE FIZ

Como dizia o poeta Ibiapina: "Assim como são as pessoas, são as criaturas".

Rodrigo formou o grupo de whatsapp para facilitar o Encontro dos Primos no interior de São Paulo. Aliás, havia até primos de terceiro grau. Orientara que se evitasse falar em política, em religião. No máximo, falar sobre a universalidade de fazer o bem sem olhar a quem. Difícil a mediação diante das irreverências, das mesmices, das fotos quase pornôs, das desavenças inevitáveis, das piadas pra lá de sem-gracice. 

Rodrigo não se furtava de teclar no particular, para evitar melindres. A turma de primos era efervescente. Havia primos que Rodrigo pouco conhecia. Outros, nunca vira. Nem sabia que existiam. Nas aventuras do mundo virtual do grupo, muitas vezes Rodrigo ficava pensando — há colegas de escola que tomam rumos totalmente divergentes na vida. Daí a conclusão de que colegas de infância não são, necessariamente, amigos no presente e no futuro. Podem se tornar desde sacerdotes a membros de comandos vermelhos, desde evangelizadores a pedófilos. Por que não? Com primos não seria a mesma coisa? Quem sabe. 

O que importa é que Rodrigo resolveu agitar um pouco o grupo. Organizou a campanha Fui eu que fiz. 

Numa determinada semana, nada de repassar coisas que os outros fizeram. O desafio seria postar foto, filme, áudio, texto com algo que a pessoa mesma fizera, além das realizações do seu cotidiano profissional.

E declinou alguns exemplos. Pintura que fez, vaso que mais gosta, flor que vale a pena admirar. A fruta rara que plantou, o telhado que consertou, a parede que pintou. O carro que lavou sozinho, o seu tricô, crochê, o pneu que trocou sem usar macaco (ou usando, pode ser), o passarinho que salvou. O buraco que fez, o banho que deu no gato, a escultura que modelou. O dispositivo inédito que criou, a receita que inventou, o que conseguiu ensinar pro papagaio. O resumo comentado do filme que viu, uma bijuteria totalmente produzida por você, um arranjo de flores, uma máquina que inventou, uma roupa que desenhou ou costurou. O quebra-cabeças que montou, a decoração que fez, aquele estilingue como o do seu tempo de criança, aquilo que descobriu no baú das recordações ou no fundo da gaveta. O que inventou com as tampinhas, uma maquiagem, uma poesia de próprio punho, uma fantasia de carnaval que bolou, uma foto maravilhosa que tirou, um desenho seu, uma charge, um trecho carpido por você...

Parece que o pessoal entendeu. E vieram as postagens. 

Chamou a atenção de Rodrigo a foto do buraco feito por Enéas. Todo retilíneo. Pela comparação com a altura de Enéas — perfilado ao lado da obra que apresentava com orgulho —, parecia ter a cavidade uns 70 cm por outros 2 metros. A profundidade era oculta na foto. Rodrigo ligou para Enéas. E perguntou pelo buraco. Do que se tratava? assim tão perfeito? Ao que ouviu do primo distante:

— Rodrigô... 

Esse acento afrancesado parece uma constante em demonstrações de intimidade: Camilá, Paulô, Sandrá, Rodrigô, Helená, Carvalhô... 

— Meu vizinho está me enlouquecendo com o volume de som de suas festinhas e suas sessões alucinantes de música. Já falei mil vezes. Ele ignora. Da próxima, vou enterrá-lo nesse buraco.

Aristides Coelho Neto, 24 fev. 2020

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