TEXTOS DO AUTOR

NA HORA DE JULGAR

De que adianta inteligência sem sabedoria?

Conta-se que Fiorello LaGuardia, considerado o melhor prefeito que Nova Iorque já teve, ostentava um aguçado senso de proteção e amparo social. Ajudou significativamente, em seus mandatos, pessoas carentes com seus programas inovadores de apoio à saúde e educação. Atendeu com afinco as áreas mais necessitadas de Nova Iorque, fazendo-a cidade de melhor qualidade de vida.  Morreu cedo, em 1947, aos 64 anos.

Brennan Manning relata que LaGuardia, prefeito "durante os piores dias da Depressão e durante toda a Segunda Guerra Mundial, era carinhosamente chamado de Little Flower pelos seus admiradores nova-iorquinos, porque tinha apenas 1,65 m e trazia sempre um cravo na lapela. Era um personagem pitoresco que costumava andar em caminhões do Corpo de Bombeiros, participar de batidas em bares ilegais junto com o departamento de polícia, levar orfanatos inteiros para participar de baseball e, quando os jornais de Nova Iorque estavam em greve, ia à rádio ler quadrinhos humorísticos para as crianças".

A história que Manning nos traz refere-se a um julgamento noturno ocorrido no bairro mais pobre de Nova Iorque. Nessa noite fria de 1935, uma senhora — a própria imagem da miséria — deveria ser submetida às penas da lei por ter roubado um pão de uma mercearia.  LaGuardia dispensara o juiz nessa noite: ele mesmo conduziria o julgamento. A história  também é relatada por Richard Simonetti em seu texto A Multa Maior (livro Atravessando a rua).  Simonetti muda o personagem em julgamento e muda também alguns detalhes, mas o que importa  é que o prefeito LaGuardia era famoso por decisões sensatas, revestidas de sabedoria e originalidade. Essa sua característica, não poderia ser diferente, despertava a curiosidade das pessoas.

A pobre senhora, com a filha doente, sem condições de dar de comer aos netos, roubara um pão. E o dono da mercearia estava inelutável em retirar a acusação.  E LaGuardia deveria restringir-se à lei vigente.  Na sentença fica então estabelecida uma fiança de dez dólares, ou dez dias de cadeia. Sabia que jamais a mulher conseguiria se livrar da prisão. Eis que ele então passa seu chapéu ao auxiliar Bailiff, coloca uma nota de dez dólares e sentencia também a plateia.   

—  Imponho uma multa de cinquenta centavos para cada um presente neste tribunal, por morarem numa cidade em que uma pessoa tem de roubar pão para sobreviver. Senhor Bailiff, recolha as multas e entregue-as à ré.

Vamos à moral da história segundo Manning e Simonetti.  Branning comenta que do dinheiro arrecadado estavam também os cinquenta centavos doados pelo envergonhado dono da mercearia, enquanto "pessoas, acusadas de pequenos crimes e de violações de tráfego, lado a lado com policiais da cidade de Nova Iorque, aplaudiam o prefeito de pé". Menciona Branning que "a graça de Deus opera num nível profundo da vida de uma pessoa afetuosa".  Simonetti arremata dizendo da multa muito mais severa a que estamos sujeitos "por vivermos num planeta onde as palavras fraternidade, bondade, solidariedade, são enunciadas como virtudes raras, quando são apenas elementares deveres, indispensáveis à preservação do equilíbrio em qualquer comunidade". Vai além: "que a felicidade do Céu é socorrer a infelicidade da Terra". Termina com a frase digna de registro: "Mãos servindo são antenas que estendemos para a sintonia com as fontes da Vida e a captação das Bênçãos de Deus!" 

Me atrevo agora a um comentário particular. É célebre a máxima de Jesus "Não julgueis".  No entanto, somos levados a julgar em situações extremas ou particulares. Há momentos em que, sem saída, somos levados a emitir juízos de valor e exercer justiça de forma a mais equânime possível.  Passamos a juízes caseiros.  Julgamos na família, ou ao redor, qual o que precisa de mais ajuda emocional, financeira, que precisa de mais exemplos, de mais conversa, de mais argumentos, de mais compreensão...   E com tirocínio entender que "os sãos não necessitam de médico".

Vale lembrar aqui a frase do arquiteto e filósofo Osvaldo Góes — "não adianta inteligência sem sabedoria". Exercitemos a temperança, a reflexão e a sensatez, para quando formos chamados a julgar por imposição das circunstâncias, que o façamos com sabedoria semelhante à de LaGuardia.

Aristides Coelho Neto, 24 nov. 2019

Comentários (3)

Voltar