TEXTOS DO AUTOR

DESPRENDIMENTO

Celina amava Márcio. Márcio amava Vera. Vera gostava de Celina. Astolpho amava Deolinda. Deolinda amava Cartola. Cartola gostava de Noel. Deolinda cuidava de Noel. E de Cartola.

Celina amava Márcio. Márcio amava Celina. Casaram-se. A vida, plena de momentos felizes, lhes deu quatro filhos. Mas o destino se revelou instável, anunciando mudanças de rumo. Márcio, dentista, tinha uma secretária dedicada chamada Vera.  Os dois se apaixonaram e resolveram assumir o romance e morar juntos. Dada a notícia a Celina, ninguém nunca soube se ela se abalou com a decisão do marido. Se sim, nunca demonstrou. Respeitou a decisão. Continuou a tratar Márcio com o desvelo e a delicadeza de sempre.  

A surpresa veio depois. Márcio e Vera tiveram três filhos, que se integraram totalmente à família já constituída. E os filhos de Vera e Márcio passaram a chamar Celina de avó. A família cresceu, os sete filhos se conectaram de forma exemplar. E todos os carinhos se tornaram recíprocos. Vera nutriu respeito e afeição por Celina. E vice-versa, Celina por Vera.

A família Takano não admitia a chegada de Amélia, brasileira, quebrando tradições rígidas nipônicas que vinham lá da época dos samurais. O patriarca Takashi Takano ajuntou muitas razões contrárias ao casamento de Amélia com seu filho Kentaro — uma penca de razões, bem detalhadas.  Mesmo assim, obstinados, estes se casaram. Amélia por muito tempo lidou com a indisfarçável rejeição da família japonesa por ela.  A vida deu suas voltas, o tempo passou. Takashi, ao final da vida, doente e cansado, só aceitava a presença de Amélia, a nora antes recusada, para cuidar dele. E assim foi até o final dos dias.

Foi um golpe para Astolpho ver Deolinda se decidir a ir morar com Cartola no barraco vizinho. Astolpho até quis arrebentar a cara de Cartola por lhe roubar a mulher. À época, Cartola estava doente, magro, muito fraco. E Astolpho resolveu lhe dar uma surra apenas quando sarasse.

Cartola e Noel, amigos diletos, não raro chegavam os dois mamados, Noel mais que Cartola. E Cartola recorria à esposa — Deolinda cuidava de Noel como se cuida de um neném. Esquentava água, tirava a roupa de Noel, pegava-o no colo (era forte), dava-lhe banho de cuia. Ensaboava. Enxugava. Vestia-o com o pijama de Cartola. Preparava um caldo forte, de tutano, tomate e cebola. Às vezes engrossava com algo mais.  "Que ela lhe dá na boca, devagarinho, enquanto Cartola observa com olhos de aprovação."

Deolinda era um pouco mais velha que os dois. De espírito acolhedor, amável, ela sempre cuidava da dupla de boêmios. Um anjo. "Alimenta e cura suas bebedeiras, trata-os como a duas crianças, perdoa-lhes as traquinagens."

Se isso nos surpreende, há algo mais. Astolpho, que perdeu Deolinda para Cartola, acabou desistindo de ir às turras com o sambista.  Morreu Deolinda em 1946. Cartola casou-se com Zica. E Zica, muito amiga de Deolinda, cuidou de Astolpho. Este, ao final da vida, não tinha ninguém que o amparasse.

São três casos que nos fazem pensar. Que tipo de amor flexível é esse? Bem-vindos sinais do que seja amizade verdadeira, desprendimento e desapego...

Que relação tinham essas pessoas com bens materiais?  Poderíamos concluir que é nas pessoas de vida simples, despidas de ambição, que esse tipo de amor floresce. Mas não! Os dois primeiros casos são de pessoas de classe média. Só o último caso se dá com pessoas pobres (à exceção de Noel).

Cabe então refletir sobre o apego a bens materiais e a premissa falsa de que alguém é dono de outrem. E refletir como tais posturas se relacionam com desejos vazios de significado, de posse, de poder, de exclusivismo.

Na busca incessante da felicidade vale a pena considerarmos um número sem conta de histórias bem-sucedidas de amor-desapego — uma abertura para o novo (amor fraterno não deveria ser chamado de "novo"). À medida que formos caminhando nessa direção, haverá menos frustrações de nossas expectativas.  E maior liberdade, por consequência, já que vamos nos desembaraçar de coisas que no fundo são pequenas, inexpressivas. Sempre é bom lembrar que a felicidade, dizem, não é estação a alcançar, mas uma maneira de viajar.

Aristides Coelho Neto, 3.4.2019

Nota — Sobre Cartola e Noel, ver Noel Rosa, uma biografia (de João Máximo e Carlos Didier). Brasília: UnB, 1990. pp. 200 e 207.

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