TEXTOS DO AUTOR

TERCEIRIZAÇÃO DA MEMÓRIA

Afinal, o Google embota, desbota? Ou bota a nossa memória pra não funcionar?

O dia em que fiquei na dúvida sobre a minha idade exata (!) e também sobre o nome correto do filho da Cristina (sabia que começava com T), ela, gentilmente, me ofereceu uma revista para ler. Bem, como não sei onde pus a revista, fica difícil lembrar o nome dela (da revista, não da Cristina). Tinha no canto direito superior a palavra mente em amarelo. Óbvio, com um mínimo de informações, fui ao Google. E lá, certamente, encontrei o nome: Segredos da Mente: cérebro e memória, de 2018. O tema principal era memória e personalidade. Chamou-me a atenção, lá na pág. 26, o texto "Sua mente mudou com o Google (e pode ser que você nem tenha se dado conta disso)". 

Certa feita, numa conversa sobre um filme de Elvis Presley, rodado em Acapulco, tentei me lembrar do nome do penhasco altíssimo de onde mergulhavam aqueles caras corajosos. Uns interlocutores não conheciam, outros sim, mas ninguém se lembrava do nome. Claro, foi-se ao Google. Era La Quebrada. E mais, os adeptos dessa tradição no México se chamam clavadistas. O salto, uma tradição no país.

Foi nesse dia que me aflorou um sentimento indefinido quanto ao Google. Era mocinho? era bandido? Por que de repente se imiscuía nas conversas? Ninguém mais tem o direito de não lembrar das coisas? e ficar remoendo? até que o que se quer brote do baú do inconsciente? Pois é, o tempo em que a gente dormia sem respostas acabou. Nesse artigo de que eu falava, que teve Natália Negretti como colaboradora, há uma frase-destaque que explica bem a situação dessas minhocas que estão em minha cabeça e na de muita gente. "A potência de memória que temos não consegue armazenar a quantidade de informações que recebemos no mundo contemporâneo. A solução é terceirizar, como no caso do Google. Dessa maneira, o esforço passa a ser uma busca externa, não interna", afirma Sylvia Flores, psicóloga.

Os cientistas citados no artigo têm lá suas opiniões, diante das pesquisas até hoje implementadas. Há uma tendência de a mente "eliminar a necessidade de armazenar informações", por se saber onde e como buscá-las. "É como se o cérebro se adaptasse às circunstâncias atuais de ter a informação sempre acessível a apenas um clique", considera Betsy Sparrow, psicóloga da Universidade de Colúmbia. Outros classificam, e ratificam, como natural esse comportamento de terceirizarmos a memorização, como se poupássemos a memória para coisas mais importantes, como se jogássemos parte do material da mente em um disco rígido externo. E vêm os neurocientistas vendo isso como algo maléfico. E vêm outros mais otimistas a dizer que é melhor não memorizar determinadas informações, de datas, locais, nomes de personagens etc., valorizando, no entanto, o fato seletivo de guardarmos — aí sim — uma avaliação qualitativa do conteúdo da informação. 

A meu ver, as consequências dessas transformações trazidas pela era digital não podem ser avaliadas prontamente. Quanto tempo vai levar para aferir os desdobramentos? as consequências? Não sei responder. Percebo, porém, que só uma seletividade aguçada e uma terceirização do armazenamento para saber lidar com o volume incomensurável de informações que se recebe hoje. E tenho consciência, no entanto, que enxada, memória, corpo sem utilização, enferrujam.

No frigir dos ovos, nesse tema, o que achei sensacional foi o fato de um amigo meu, o Brandão, não contar sobre suas viagens ao exterior sem a presença da esposa. Sozinho, a conversa dele é zero à esquerda. Com a esposa, tudo vem à tona — os locais, as quilometragens, os preços, os nomes de restaurantes e comidas, e muito mais. A conversa só flui colorida com a presença da esposa. Porque tudo ele pergunta a ela! Sem mapas físicos, sem anotações, sem smartphone, sem computador, sem internet, sem depender de bateria, ela a tudo responde, complementa e detalha. Abrilhanta qualquer narrativa. Privilegiado HD externo. Terceirização diferente, cômoda, que só vem agigantar e exaltar a preguiça explícita de Brandão.

Aristides Coelho Neto, 4 jul. 2018

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