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FISCALIZAÇÃO NO DF — mínima autonomia, pouco resultado

O sonho dos agentes fiscais era alcançar a autonomia, antes mesmo da criação da AGEFIS — Agência de Fiscalização do Distrito Federal. Cumprir o papel que lhe cabe na sociedade sem atrelamentos, sem algemas. Infelizmente não deu.

Da proa do meu barco pelas águas da existência, a olho nu começo a avistar a Ilha da Aposentadoria. Alguns amigos pensadores da hora (ou de boteco) dizem que comecei a ter um sintomático afrouxamento da censura. Essas forças morais inibidoras, chamadas de superego, passaram a atuar  em mim de modo mais libertino e solto. Em suma, diante desse vislumbre insular de afastamento do serviço ativo, o efeito colateral mais evidente é falar sem autocrítica. Falar o que me der na telha e pronto! Medida terapêutica contra sentimento de impotência e depressão. Um desabafo medicinal.

O país da Copa 2014 prima pelos contrastes. O Distrito Federal não poderia ficar de fora.  O bolsão de favelização e pobreza que vai se estendendo pelas beiradas do Rio de Janeiro e tantas outras cidades existe também aqui. Só não temos morros. Tudo igual.

A revista VEJA Brasília, de 4.6.2014, às págs. 20-24, em reportagem intitulada “Expansão fora de controle”, de Lilian Tahan e Ulisses Campbell, traz um retrato assustador dos parcelamentos irregulares chamados Sol Nascente e Pôr do Sol, em Ceilândia, cidade do Distrito Federal. O ritmo de crescimento é o maior do Brasil. Segundo os repórteres Lilian e Ulisses, “essa multiplicação só é possível graças a dois fenômenos que andam de mãos dadas aqui no DF — a invasão de terras publicas e a persistente inação das autoridades responsáveis”.  Pode-se inferir que a inação das autoridades passa primeiro por políticas públicas insuficientes e inadequadas, de modo a garantir o direito constitucional da moradia a todo cidadão. Mas a inação mesmo a que a reportagem se refere é quanto aos órgãos fiscalizadores. Nesse saco, inclui-se a AGEFIS – Agência de Fiscalização do Distrito Federal.  Não quero entrar no fundamento filosófico-sociológico do “sonho da casa própria resolvido na marra” (vide p. 23) e suas causas, mas me atenho aqui ao papel dos órgãos fiscalizadores. O arremate da reportagem (p. 24) é  sarcástico — diante da afirmação de Nelson Müller, da Secretaria de Ordem Pública, de que “essa [Sol Nascente e Pôr do Sol] é uma das áreas mais vigiadas do DF”, vem o irônico fecho: “Imagine se não fosse”.

Várias cidades surgiram assim, da incompetência das instituições públicas — Varjão, Vila Estrutural, Vila Telebrasília, Paranoá, Itapoã... Não pensem que esse retrato da incapacidade, desarrumação e falta de planejamento são coisas do DF tão somente. Nós somos um tiquinho do que acontece no país, somos uma imagem fiel do que rola nesses brasis por aí. Sabe-se que a escolha de nossos governantes e parlamentares é responsabilidade de todos nós.  Temos certa culpa, sim, de tudo que fazem de errado, bem como de suas omissões criminosas.

A disputa por território já ocasionou grandes guerras na história. Ela acontece tanto com gatos, hienas, como com humanos. Hoje nem tanto. Como nem tanto?, alguém diria, citando Rússia e Crimeia. Terra é sonho de todos, desde um pedacinho para sua família, como um meio de vida desonesto para grileiros e homens públicos sem escrúpulos, ou outros interesses. Hoje, pelo menos no DF, o que se vê é a terra (que não é sua) se transformar em moeda de troca com fins eleitoreiros. Esse o grande motivo dos inchaços populacionais no DF. E terra nua ou construída sempre enche os olhos de qualquer que seja. Paulo Octavio, solto provisoriamente hoje, que o diga.

Agora imaginem a que é submetido um órgão fiscalizador como a AGEFIS. Poucas são as interferências para demolir edificações, para desconstituir parcelamentos irregulares. Mas inúmeras são as injunções de governadores, deputados distritais (nossos vereadores travestidos de deputados estaduais), senadores, secretários, chefes de gabinete, assessores, e por aí vai, para sustar o poder-dever do Estado de erradicar invasões e edificações irregulares. Isso sem computar, é claro, as ordens judiciais, as liminares, e a falta de vontade dos policiais de apoio às operações, já que eles próprios, os policiais civis ou militares, adquirem lotes de grileiros, quando não invadem áreas não edificáveis. Desembargadores, juízes e políticos também o fazem. Com ou sem boa-fé. Na marra, já que não podem ou não querem comprar por meios usuais e lícitos. Simplesmente, todos ponderam: “eu também sou filho de Deus”... Diz-se que um ministro, incomodado com um impeditivo à sua carta de habite-se, encomendou simplesmente alteração da lei. E conseguiu.

O sonho dos fiscais e inspetores da carreira de Fiscalização do DF sempre foi alcançar a autonomia, antes mesmo da criação da AGEFIS. Cumprir o papel que lhes cabe na sociedade sem atrelamentos, sem algemas, sem interferências de quem quer que seja, eis o sonho. Infelizmente isso não aconteceu.

Não precisam me dizer que a AGEFIS é composta de todo tipo de pessoa, como em qualquer comunidade, qualquer empresa — os que honram a classe, os éticos, os profissionais, os que só enxergam o interesse coletivo, mas também os desonestos, os aproveitadores, os que não querem nada com trabalho, os malas, os individualistas, os que querem que a AGEFIS fique do jeitinho que está. Como em qualquer lugar, isso não é novidade. No que tange à autonomia para agir, diante do efetivo engessado pelos fatores elencados e em constante redução — em função das aposentadorias —, estamos atrelados a interesses de todo tipo, que emanam de superiores ou de quem assim se julga.  Na atualidade, a AGEFIS apenas apaga incêndios, atende a demandas de Ministério Público, Justiça e denúncias. Não bem atende, mas usa os meios a seu dispor diante da intensidade e da origem da pressão que se exerce. Vale dizer que estar envolto em burocracia ineficiente e com restrito coroamento das ações são as maiores frustrações do agente fiscal. Saber dessas fragilidades é direito líquido e certo da sociedade.

O crescimento populacional no DF é inexorável. Não para. E a velocidade para transgredir é maior que a capacidade de coibir. Ou seja, violar e impedir são dinâmicas hoje incompatíveis. Diante das limitações operacionais e outras tantas para conter o avanço incontrolável das ocupações irregulares, há de haver vontade política. Mas o que se esconde por trás dos políticos que nos aparecem? Bem, são uma caixa de surpresas. Ou não, quando estes são presos.

Hoje, dentro da AGEFIS, são milhares de processos que se destinam a desobstruções de áreas e demolições de edificações — sem licença, ou em área pública, ou que contrariam normas edilícias, em condomínios irregulares etc. Quem define e como se define dentre quinhentas irregularidades quais as dez que vão ser sanadas? Ninguém sabe bem como isso acontece. Ninguém sabe que vento leva o barco da Fiscalização e nem pra onde. E nem quem é o capitão dessa missão inglória. Fica então a vontade incontrolável de aportar, pelo menos o meu barco, o quanto antes na Ilha da Aposentadoria.

Aristides Coelho Neto, 7.6.2014

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