TEXTOS DO AUTOR

MEU TIO OCTAVINHO

Poetas e boêmios passam e deixam sua marca. Gozam a vida e sofrem com a mesma alegria, convictos da sua escolha.
ZeCarioca

O especial de Adoniran Barbosa da TV Brasil me remeteu ao tio Octavinho. A música "Joga a chave", dita de Adoniran e Osvaldo França, tio Octavinho chamava a si a autoria. Fez a música num bar, dizia. Vendeu por uma ninharia. E Adoniran teria gravado como se fosse dele. 

"Joga a chave, meu bem / Aqui fora está ruim demais / Cheguei tarde, perturbei teu sono / Amanhã eu não perturbo mais. / Faço um furo na porta / Amarro um cordão no trinco / Pra abrir do lado de fora. / Não perturbo mais teu sono / Chego à meia-noite, sim / Ou então a qualquer hora."

O cenário é perfeito: rebeldia, madrugada, boemia. Música que se refere a Mariazinha, sua esposa? Quem vai saber? Adoniran já se foi em 1982, Octavinho em 1977. Os dois tinham um ano de diferença na idade. Teriam se conhecido? Pode ser. Adoniran, notívago, tio Octavinho também. Se Octavinho fez a música realmente, essa foi a única. Ele gostava mesmo é de fazer acrósticos. Acrósticos são poesias em que as primeiras letras (às vezes, as do meio ou do fim) de cada verso formam, em sentido vertical, um ou mais nomes ou um conceito, máxima etc. Acróstico era o artifício mais imediato para agradar alguém ou para arrancar um dinheirinho. Tio Octavinho, o segundo entre sete irmãos, era poeta, chamado também poeta Grilo. Boêmio inveterado, homem da noite, tinha bom coração — o pouco que sempre teve era também dos outros. Mas desde criança era da pá virada. Menino ainda, contavam as tias, ele sempre descobria os esconderijos em que a família guardava alguns patacões de prata, poupança, que sumiam misteriosamente com os investimentos dele em guloseimas. 

Para que não saísse de casa, meus avós o deixavam de camisolão, muito comum nos anos 20. Trancavam as roupas à chave. Mas ele dava um nó entre as pernas na vestimenta de dormir... e pernas pra que te quero. 

Lembro-me dele com suas biritas e seu inseparável cigarro, contando histórias, falante, envolvente. Os desregramentos cobraram dele ao final, mas a vida de Octavinho, sem pensar no dia de amanhã, em parte deve ter sido divertida. As artimanhas que usava para envolver os parentes e amigos, como tudo, acabaram em decadência. Só me lembro de uma atividade sua, em nossa convivência pequena: captava recursos para o hospital Sanatorinhos, de Campos do Jordão.

O maior sinal de declínio de que me lembro foi ele chegar lá em casa com um frango vivo espremido na sua pasta, pescoço de fora, pedindo a minha mãe que preparasse. Claro que não comprara o frango. Dizem os entendidos que o sinal mais explícito da degradação é surrupiar galinhas. As lâmpadas da tia de Mirassol, que ela não vencia trocar por novas, era ele quem as substituía por queimadas. Claro, para angariar uns trocados.

Pois é, tio Octavinho... do bigodinho de Adoniran, do terno surrado, sempre de gravatinha, camisa encardida, avesso ao banho. Das manhas e artimanhas do malandro carioca, sempre vivendo de favor, na instabilidade que leva ao desmantelo da família. Adoniran, sempre lembrado. Tio Octavinho, da verve poética, sempre esquecido, onde andará você nesse mundo de meu Deus? Qual teria sido o papel inconcluso e débil de nós outros em nossa convivência fugaz e superficial?

Aristides Coelho Neto, 16 maio 2010

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