TEXTOS DO AUTOR

Saudades nem sei bem do quê

São José do Rio Preto, um encontro saudosista de velhos amigos, uma viagem provocada pelo jornalista Romildo Sant'Anna... Reminiscências afloradas, quantificação imprecisa de "quanto dura uma saudade".

Outubro de 2009 foi marcante para mim. Eu passava por Rio Preto, SP, para ver minha mãe, nas dificuldades crescentes dos seus 90 anos. Também para reencontrar amigos da década de 60, num evento que assinalaria o aniversário de 45 anos de amizade de um grupo de outros tempos que se consolidou em torno de um clube chamado Jangada, de estatuto virtual, com “sede” na Saldanha Marinho, na casa de Adelino e Cecília Carareto. O casal Carareto sempre apostou na força da amizade. Engajava-se nos eventos improvisados, nas chamadas brincadeiras dançantes e em tudo o mais que a rapaziada curtia à época. Eram agregadores. A tevê – ainda incipiente –, o rádio e o cinema prenunciavam o fenômeno da globalização, fazendo com que nós, jovens de Rio Preto, fôssemos quase iguais aos outros de outras cidades, na forma de falar, nos gostos, na roupa, nas aspirações adolescentes, nos sonhos enfim.

Galeria BassittEu não esperava muito do encontro de 2009, imaginando que pouco tivesse para conversar com colegas, decorrido tanto tempo. Coleguismo nem sempre vira amizade. No entanto, à medida que envelhecemos, aflora uma sensibilidade não sabida, que vem nem sei de onde, em horas não escolhidas,  uma saudade das coisas que já não são. E as pessoas crescem em importância, vistas com os olhos da alma, mais do que pelos cristalinos enrijecidos. Hoje eu sei que cada pessoa, na sua individualidade e vivência singular, é interessante e sempre tem algo a oferecer. O tempo enseja esse capacidade de doação do ser humano. Enseja também esta reflexão. Por essas e outras razões foi surpreendente e gratificante o encontro. Lavamos a alma e recarregamos as baterias. Que bom estar com as duas Reginas, Zé Casseb, Zé Urbano, Maia, os Carareto, Danilo, Altino, Braga, Fogaça, Dublim, Marquinho, Cândida, Grisi e muitos outros, com os agregados que a vida quis.

No mesmo fim de semana eu havia conhecido Ulysses Mussi, hoje um marchand, de existência sempre marcada pelo arrojo nos empreendimentos. Seu pai havia sido patrão de meu pai nas Casas Moysés. Mundo pequeno esse...

Pensando nas coisas passadas, ligadas direta ou indiretamente a mim ou a Rio Preto, deparei com o artigo “Saudade da Independência”, de Romildo Sant’Anna.

Romildo, sempre lúcido e hábil nas palavras, falou da Rádio Independência. Conduziu o assunto pelas beiradas, começando pela obra singular da Galeria Bassitt. Passou pelo que era o nosso cotidiano em final dos anos 50 e década de 60, inevitável e bem-intencionadamente despertando saudade, dizendo do que representou a Rádio Independência no contexto de Rio Preto. O texto propiciou-me   pensar mais demoradamente nessa tal de saudade.  Ao final, coloco à disposição do leitor o artigo do professor e amigo Romildo Sant’Anna, na íntegra, do jeitinho que foi publicado no Diário da Região de 8 de outubro de 2009.

Não sei se a visão que tive da construção da Galeria Bassitt coincide com a do amigo querido, articulista rio-pretense que, no mesmo mês de inauguração da Galeria, completaria apenas nove anos de idade. Naquele ano de 1957, eu e Romildo terminávamos o segundo ano primário, no Grupo Escolar Professor Oscar Arantes Pires. Minha visão de criança era a de que um prédio diferente e chique estava sendo entregue à cidade, com seus oito andares de escritórios e lojas.  Mas nos próximos anos a imponente galeria faria parte da minha adolescência, com suas marcantes pastilhas novidadeiras. Na garagem da Galeria Bassitt o grande mistério — seria verdade ou não o retumbante Baile do Cabide?

Assim como Romildo, todos nós iríamos nos entusiasmar com as escadas helicoidais, com os instrumentos do Florindo Mani, com as grelhas metálicas que prendiam os saltos das mulheres que passavam por ali a trabalho, a passeio ou abrilhantando o ir-e-vir do footing da Bernardino de Campos. Foi na Galeria Bassitt que enfrentei meu primeiro emprego no escritório das Cestas de Natal Amaral, que ficava bem ali na parte voltada para a Marechal Deodoro. Minha correntinha de ouro também foi trocada por uma aliança pobre que todos ostentavam com orgulho verde-amarelo.

Quando Romildo relembrou os horários das sessões de cinema, voltou-me a pergunta nunca respondida — por que às 19h40 e 21h30 e não num horário mais redondo? Bem, isso pouco importa. Era a marca do Curti, dono do cinema.

A Rádio Independência AM a que Romildo se refere era a de 1962, a primeira,  fundada por Maurício Goulart. Não sei se existem programas gravados tão disponíveis como os exemplares do livro infanto-juvenil “Joana”, de Goulart, ainda oferecidos nos sebos. Que maravilha seria encontrar nas lojas de antiguidades gravações dos programas da Independência...

Muita gente, apesar de rio-pretense, não vai entender do que estou falando, mas o mais importante é a reflexão que vem agora.

Bottas, com sua frase escolhida a dedo valorizava magistralmente esse sentimento, como relata Romildo — “A mais doce ilusão dura um segundo, e dura a vida inteira uma saudade” —, que logo a seguir se autotranquiliza afirmando, ao final do artigo gostoso do dia 8, que saudade mata, embora ele esteja ileso (ainda).

Eu, cá comigo, cada vez entendo menos dessa tal de saudade. Sinto saudades de todas as coisas do passado, principalmente de Rio Preto. Saudade dos amigos... do Romildo Sant’Anna, do footing, da rádio Rio Preto, da Independência, da "Crônica do Dia" da Dinorath do Valle, dos trens da Araraquarense, dos entrevistados do meu livro que já se foram, do quintal, da mangueira da casa onde nasci. E chego à conclusão que onde quer que eu vá o passado me persegue. Mas eu gosto!...

Difícil de explicar é a saudade que sinto de gramofones, fordes bigode, gravações em funil, e tantas outras preciosidades que, pasmem, não fizeram parte da minha vida.  Mas que delas sinto saudades, se é que o nome pra isso é apropriado.


Aristides Coelho Neto, 13.10.2009


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Saudade da Independência

 Romildo Sant’Anna


Vi construir a Galeria Bassitt. Até hoje guarda seu charme na anatomia ondulada de paredes revestidas de pastilhas. Não é desses caixotes verticais que tingem de monotonia o centro da cidade. Ao pé da escada em espiral que conduzia à Independência, vi casais deporem as alianças em forma de “ouro para o bem do Brasil”. E saírem com anéis de latão e pulsante patriotismo. Ecoando pelos corredores do térreo e sobreloja, acordes da Joia Musical, o teque-teque da Escola Renascentista, o riso grisalho do Telmo, na Livraria Planalto, e o burburinho do Salão Azul, onde o Mozart, o Cido e o Pestana davam toques de elegância aos penteados masculinos.

Na calçada, sob as grelhas de aço, ventiladores constrangiam as moças a abafar as saias plissadas imitando Marilyn Monroe em “O Pecado mora ao lado”.  Cresci radiouvinte. Senti a melancolia das seis da tarde, quando a cidade compungida reverenciava a mãe de Deus. Após, Antônio Carlos Bottas anunciava as fitas de cinema. Sob o prefixo de “Se meu apartamento falasse”, proclamava com lirismo: “Infeliz de quem passa pelo mundo, procurando no amor felicidade. A mais doce ilusão dura um segundo, e dura a vida inteira uma saudade”.  E, em seguida, no Cine Rio Preto, às 19h40 e 21h30, em tecnicolor e cinemascope, Gregory Peck, David Niven e Antony Quinn em... “Os canhões de Navarone”.

Inda ecoa a fome de bola no afeto empostado de Nelson Antônio, Hitler Fett, Alexandre Macedo e Mário Luiz, o comentarista que sabe o que diz, reportagens de J. Hawilla e intervenções do radioescuta José Luís Rey. Tinha “A hora do motorista”, com Araújo Netto. Roberto Toledo e a misteriosa “Lady X” folheavam a quatro mãos um almanaque de costumes. Amaury Jr. e César Muanis enunciavam o tom high-life duma cidade acanhada, e o mesmo Bottas travestia-se em Véio Tatau, oferecendo modas e lendo cartas dos que sentiam saudade da parentalha na roça.

No almoço, Petrônio di Ávila apresentava a “Crônica do dia”, quase sempre ao estro de Dinorath do Valle.  Era o cotidiano a debulhar-se em lirismo. “A hora fantástica” evocava os desesperos da vida. Custa apagar da memória a locução elegante de Adib Muanis, o combativo Rubens Celso, as meiguices de Eládio Baida, Paulo Serra Martins, Clenira Sarkis e Garcia Neto. E a sentimental Cecília Mota, que chorava em entrevistas.

Houve um tempo em que a cidade e sua rádio era um só pertencimento. Tal como a visionara Maurício Goulart, seu fundador. Nas ondas da vida, orientei pesquisa de mestrado de Vera Lúcia Rezende. Outra vez se acendeu o redemoinho de vozes se encaixando em geometria, como os pequenos mosaicos que adornam a pele da Galeria Bassitt. Deles inda ressoa uma ternura: Roberto Souza, o dono da noite. Sua prosódia em delicadas nuanças resumia a Era de Ouro na dicção dum lugar que se dispunha a barganhar juras de amor por anéis de latão.

Dizem que a saudade mata, mas disso inda nunca morri. Um dia, a Independência emudeceu ou exauriu-se no tempo. Deixou um murmúrio na lembrança. E Rio Preto, desfalcada na ternura, nunca mais foi a mesma.


Diário da Região
, 8 out. 2009, quinta-feira, p. 2A

Romildo Sant’Anna, escritor, professor e jornalista, é membro da Academia Rio-Pretense de Letras e Cultura.

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