TEXTOS DO AUTOR

A FLUÊNCIA DO MATUTO NORDESTINO

Num breve olhar sobre as muitas maneiras de falar, um manifesto de admiração pela fluência do nordestino.

 [...] a vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros.
Vinha da boca do povo na língua errada do povo. Língua certa do povo. Porque ele é que fala o gostoso português do Brasil [...]
Manuel Bandeira (Evocação do Recife)

Jô Oliveira

Sempre me surpreende a riqueza do linguajar do matuto nordestino. Essa riqueza está presente na obra de Ariano Suassuna e tantos outros. O nordestino Jessier Quirino não fica a dever a tantos artistas renomados dessa região do Brasil — o Nordeste foi e é o berço de luminares da poesia, da literatura, do cordel, da música. Quirino, que se diz “arquiteto por profissão, poeta por vocação, matuto por convicção”, é poeta e escritor. Tem sido considerado um autêntico representante da cultura popular nordestina. No caso d’O Matuto no Cinema, fica evidenciada a fluência do nordestino, num verdadeiro espetáculo, advindo do personagem que, sem saber nem ler nem escrever, assiste a um filme legendado na capital e relata esse mesmo filme a seu modo na sua cidadezinha do interior. Indico porque vale a pena. E indico também Assim é que se fala no sertão.
O Brasil é imenso, mas felizmente no país existe uma unidade linguística muito interessante e salutar, que permite nos entendermos nos quatro cantos do território. Isso sem contar a riqueza de nossas expressões regionais. Na Itália já não é bem assim. Há italianos idosos que só conhecem o seu dialeto e podem não se entender com um vizinho de região ou de uma cidade próxima na mesma Itália.

Sabemos todos nós que não existe uma padronização no uso da língua. Nossa língua é usada de muitos jeitos pelos seus falantes. Sempre existe a influência dos novos tempos, da tecnologia (hoje da internet), dos costumes de uma região, de uma classe social. E de acordo com o contexto e o repertório lexical do interlocutor é que vamos ajustar o nosso. Em nome da comunicação, esse ajuste é imprescindível, dá-se quase que espontaneamente.

Não se justifica uma pessoa que possua uma forma de falar mais rebuscada, pelo seu bom nível de escolarização, por dominar todas as complexidades da escrita, depreciar quem “assassine a gramática”, na forma despojada de se expressar em função do seu contexto sociocultural. O preconceito linguístico vem sendo estudado atentamente pelos sociolinguistas e o que se espera é que esse preconceito dos letrados não crie barreiras psicológicas para os iletrados em razão da desigualdade de oportunidades.

Incluem-se na massa iletrada as crianças em fase de alfabetização — ou adultos alfabetizados tardiamente — iniciados no domínio da língua e que, nesse aspecto, devem ser, todos, tratados com muita atenção, de forma a que não se inviabilize radicalmente o seu gosto pelo aprendizado e leitura. Classificar uma pessoa quanto a “falar errado” é muito relativo. E depreciá-la em público pode ser um caminho sem volta na jornada do aprendizado.

Existe uma concepção equivocada sobre a modalidade popular da língua. Numa tendência a valorizar a norma padrão na escola, surge muitas vezes um desrespeito por outras formas de falar. O Brasil “é [...] uma sociedade multicultural — a quantidade e diversidade de subculturas agregadas em comunidade de fala devem ser vistas não como um problema, mas antes de tudo como um recurso, tão precioso quanto a biodiversidade o é a nível biológico”, justifica a professora Lúcia Quental, citada por Cleide Faye Pedrosa em seu trabalho A prima rica e a prima riquíssima.

A diversidade linguística no Brasil é enorme. Costumo dizer que o diferente falar regional (como o “r” arrastado do interior de São Paulo, por exemplo, em meio a tantas outras diversidades brasileiras) deve ser encarado como patrimônio, como riqueza. E não como motivo de perplexidade. Pobre seria o português se não apresentasse a pluralidade das normas culta, doméstica, literária, popular, técnica. Considerar o falar do matuto como pobreza, isso sim é desrespeito linguístico e nisso estão certos os sociolinguistas.

Finalizando, fica o recado aos revisores textuais. Restrinjam os ímpetos da correção ortodoxa ao texto escrito e consultem o autor quanto aos limites a observar. No que tange à revisão de falas em seminários ou congêneres — principalmente as de improviso — em que se tenha de revisar a degravação, perguntem ao autor o que ele deseja: com certeza ele vai querer que vocês consertem, que ajeitem.

E nunca corrijam seu interlocutor em uma conversa informal. É deselegante. Melhor mesmo é aproveitar o momento. E aprender com o saboroso falar informal do brasileiro.

Aristides Coelho Neto, 27 mar. 2009

 

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