TEXTOS DO AUTOR

RESQUÍCIOS DOS TEMPOS DE IRRACIONALIDADE

Se a vida é pressuposto da personalidade e supremo bem individual, como agir diante da banalização do mal nos dias de hoje?

 A vida – ensina o saudoso Nelson Hungria – é pressuposto da personalidade e é o supremo bem individual. Mas esse supremo bem individual – a vida – é a vida de todos nós: dos favelados, dos miseráveis, dos mendigos, dos negros e mulatos (quase sempre suspeitos) e, é bom lembrar, dos delinqüentes, maiores ou menores. Por isso a Constituição repudiou a pena de morte.
Mas, no Brasil, o homicídio se tornou banal, corriqueiro, diário. A mídia trata os homicídios diários, quando deles trata, em notícias de canto de páginas perdidas. Se houver uma chacina, a notícia costuma ser maior. Só nos choca se há uma vítima de “qualidade”, um cadáver “excelente”. Se não nos chocarmos com os homicídios diários dos miseráveis que são nossos irmãos, em breve nem a excelência do cadáver nos haverá de chocar.

José Gerardo Grosso. A excelência do cadáver.

In: Correio Braziliense, 11/4/2003 (com adaptações)

Considerando que as ideais apresentadas no texto acima têm caráter unicamente motivador, redija um texto dissertativo, posicionando-se acerca do seguinte tema: A BANALIZAÇÃO DO MAL NOS FAZ ESQUECER QUE O PRIMEIRO DOS BENS É O BEM DA VIDA; DE QUALQUER VIDA.

Ao ser indagado se tinha medo de morrer, ele respondeu de pronto: “Medo, não. Não tenho é pressa”.

A resposta é hilária, mas enseja reflexões profundas a respeito da valorização da vida, pressuposto da personalidade e supremo bem individual, como afirma Nelson Hungria (apud GROSSI, J. Gerardo. In: Correio Braziliense, 11.4.2003).

A crescente banalização do mal, estampada nos noticiários, nas páginas policiais, leva-nos à emissão de juízos de valor quanto ao seguinte aspecto: qual vida valeria mais? a do delinqüente convicto? a do homem de bem? a do rico ou a do favelado? a do palestino ou a do judeu? a do pesquisador de aids ou a do que empurra carrinho numa obra? as de Chico Xavier e madre Tereza de Calcutá, ou a do motoboy muitas vezes assassino de mulheres tanto incautas como inocentes?

Os constituintes de 1988 certamente se fizeram essas mesmas perguntas, possivelmente em noites insones, diante da complexidade do tema, investidos da responsabilidade de ajustar e sintonizar a Carta Magna aos recomendáveis princípios de justeza, de ética e de moral que devem caracterizar uma sociedade livre, um Estado Democrático de Direito. Certamente, os fazedores da Constituição repassaram com rigor quais as alterações que ocorreram nas estatísticas de crimes em países que adotaram a pena de morte.  E alguns adeptos da supressão da vida como pagamento pelo crime cometido foram levados a reconhecer o caráter inócuo da sentença de morte. Prostraram-se diante das evidências de que, em nenhum lugar do planeta,  houve redução do número de atentados à vida diante do radicalismo sentencial.

Mas quem de nós já não se imaginou em situações hipotéticas extremas, forçados a classificar vítimas de violência pelo seu grau de “excelência”. Em risco iminente de enfarto, tivéssemos apenas condições de carrear uma só pessoa ao hospital, a quem acudiríamos: Vilma, a mulher fria que subtrai dos pais uma criança ainda no berçário, ou Gandhi, um estandarte do bem e da não-violência? Um Fernandinho Beira-Mar, com poderes de decretar, mesmo enjaulado, a vida ou a morte de pessoas, ou um Albert Sabin, que possibilitou vida integral a milhões de criaturas, com seu elixir, mágico a seu tempo, contra a poliomielite?

São situações imaginárias, felizmente. No entanto, sabemos, em hospitais de atendimento emergencial, a escolha entre dois pacientes em situação de risco recai sobre aquele mais novo, com maiores possibilidades de sobrevida, supostamente com maior potencial para servir por mais tempo à sociedade.

Tais elucubrações não devem, entretanto, permanecer por tempo demasiado em nosso consciente. É como perscrutar diuturnamente de onde viemos, qual a origem do Universo e da sua infinitude.

A vida, embora seja só mistério, é efetivamente supremo bem individual a ser preservado a qualquer custo. Achamos, porém, que a nossa sempre tem valência maior que a do outro. Eis a questão.

Diante dessa postura arraigadamente egoísta, é sempre bom lembrar a máxima do “fazer aos outros o que gostaríamos que nos fizessem”. Embora com ares de religiosidade, ou com feições de psicologia vulgar e piegas, é parâmetro seguro que, em momentos cruciais, pode trazer luz quando aflora a treva de nossos resquícios irracionais, por sinal, multimilenares.

Aristides Coelho Neto (1º.6.2003, em concurso público)

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