TEXTOS DO AUTOR

O RATEIO DE SANDRA FALCONE

Sandra Falcone nos diz como Mariana, cardíaca, diabética e hipertensa, motor rateando, ficou desiludida, bolando um tal de rateio. E como passou a assustada, chegando à condição de professora bem-comportadinha, com vida pra lá de regrada.

Já não tinha o menor interesse pela vida. Dois casamentos fracassados, sem filhos, uns tantos namoros frustrados, passada nos anos, espelho refletindo as tatuagens do tempo, varizes, barriga, professora aposentada miserável, sem poupança, vivendo de cartões de crédito impagáveis, tentando dar aulas particulares num bairro onde só existiam escolas públicas. Quarto-e-sala alugado, numa rua esburacada da periferia.

Espectadora da violência já natural da cidade grande: trânsito, poder, miséria e indiferenças, de mãos dadas nas calçadas.

Tanta coisa amontoada no seu passado, refletida em álbuns de retratos. Todos os seus ideais apodrecendo no chão da sua memória.

Resolveu! "Vou morrer! Chega! Não vou me submeter mais ao destino. Nada disso, eu determino a hora, pelo menos isso eu mereço!"

E começou a planejar a morte. Cardíaca, diabética, hipertensa. Com outros pequenos detalhes que o tempo costuma trazer, não seria muito difícil. Bastava não seguir as recomendações do médico.

Para começar fumaria um maço de cigarros no mínimo por dia, bem fortes, muita gordura, açúcar em profusão, massas, nenhuma caminhada diária. Nada de tomar os remédios que lhe custavam um terço da aposentadoria.

Pensando nos remédios pensou no seguro-saúde — que tomava um outro terço dos seus parcos rendimentos. Como acreditava que o seu plano de morte rápida era viável, decidiu que a melhor coisa, no caso, seria continuar a pagar o seguro-saúde. Jamais suportaria ficar nos hospitais públicos, nas filas de espera, assistindo ao sofrimento de tantos. Não seria refém do descaso das autoridades constituídas. Humilhada? Nunca!

Como era extraordinariamente organizada e com a sua morte sendo viabilizada e tendo já presenciado muitas disputas de herdeiros em partilhas, resolveu fazer um inventário dos seus objetos pessoais e distribuí-los entre amigos e familiares. Não era muita coisa, mas na situação atual, qualquer coisa era alguma coisa, concluiu, se sentindo pródiga e em paz com a sua consciência.

Essa distribuição seria feita numa longa carta. Naturalmente, além do rateio de objetos haveria também o rateio de "certas coisinhas" que ficaram entaladas na sua garganta. Sempre fora da paz, mas não achava justo levar a garganta entalada para o túmulo.

Antes de tudo, tratou de examinar as camisolas, todas uma lástima (para quando fosse hospitalizada) e um chinelo que tinha recebido de presente de umas sobrinhas no último Natal.

A propósito desse chinelo, na carta faria uma observação quanto a chinelos de couro preto, com algodão por dentro para esquentar os pés — eram uma afronta para uma mulher passadinha nos anos. Na melhor idade, na definição politicamente correta... Por que não uma bijuteria? Um sapato de salto alto?Uma calcinha provocante? Justamente um chinelo, ora! Olhando aquele chinelo horroroso decidiu: "vou comprar um bem feminino, estampadinho, combinando com uma camisola bem elegante".

Aliás, nessa mesma carta pediria perdão à sua mãe (já falecida, coitada) pela coleção de chinelos que ela havia dado à pobrezinha.

 Nessa altura, resolveu iniciar a carta. Pelos objetos ou pelas coisinhas entaladas na sua garganta? Deu uma volta pela casa, fez um rol de memória dos objetos, não eram muitos e resolveu: começo pela "garganta entalada". Uma certa indecisão quanto à melhor forma de fazer o rateio, se em capítulos, anos, por assunto... Trabalhoso e complicado, mas enfim, não poderia morrer em brancas nuvens. Isso não!

Achou um caderno escolar capenga, com folhas suficientes para descrever os rateios. Paciência e organização. Duas horas por dia escrevendo era uma boa pedida e, provavelmente, o rol, ou melhor, o rateio, estaria pronto às vésperas do seu falecimento. E se fosse hospitalizada antes do evento, poderia escrever no hospital, ninguém iria negar um pedido de uma quase morta. Mas ficou preocupada! E se pegasse uma tendinite de tanto escrever?

Também pensou na estratégia da leitura. O rateio dos objetos pessoais estaria subordinado primeiro ao rateio das "coisinhas engasgadas". Um troca-troca justo! O caderno seria entregue a uma pessoa de confiança, uma espécie de inventariante. Mas quem?

Advogado, nem pensar, não tinha dinheiro e o único que conhecia estava devendo os honorários de uma ação trabalhista contra o governo que ela havia ganhado. Estava esperando os precatórios havia mais de dez anos. O contador? que fazia de graça o seu imposto de renda? Não dava, já abusava demais. Um religioso? Não tinha religião, só acreditava em Deus. Seria uma falsidade ideológica.

Familiares? A única pessoa equilibrada na família, além dela mesma, era a tiaJustina. Mas e a tia Eunice? Era tão ciumenta. Nada de colocar a pobre numa saia-justa. O irmão? com aquela cunhada egoísta? Nem pensar! As primas e primos? Mais complicação, quando o caderno fosse lido. Pensou e repensou em amigos, amigas. Tão poucos! Desistiu.

Não estando presente para poder justificar a distribuição feita com carinho, justiça e imparcialidade, poderia ser mal interpretada. Melhor encontrar alguém não-integrante do rateio e com capacidade de avaliação. Pensou mais um pouco e consultou na velha agenda a lista de conhecidos. Homens, porque mulheres conhecidas não conhecia nenhuma.

João César? Não! Sempre fora um tremendo fofoqueiro. Boa pessoa, mas... fofoqueiro. Não servia!

Pedro Paulo? Não! Vai que alguém molestado no rateio das "coisinhas engasgadas" resolvesse revidar? Bem... melhor, não! Fazia questão de manter a imagem, mesmo depois de morta, especialmente para o Pedro Paulo. Ah!... Pedro Paulo!...

Luiz Eduardo? Que pena! E a Maria Luiza na história? Não teria como pedir perdão depois de morta e, confessar, nem morta! Descartado!

Hélio? Nunca! Cafajeste!

De repente deu com o nome de Guilherme! Perfeito, honesto, honrado, conciliador, todas as qualidades necessárias. Colega de trabalho, professor de matemática. Aposentados na mesma época e litigantes contra o governo no mesmo processo.

Ficou um pouco constrangida, afinal já fazia mais de três anos que não se falavam e que não tinha notícias dele. Resolveu arriscar e telefonar, para reacender a amizade e assim justificar a escolha, com a desculpa dos precatórios.

— Alô?

— Boa tarde, o Guilherme está?

— Guilherme? Quem esta querendo falar com ele?

— Uma amiga dele, ele está?

— Amiga, que amiga?

— É... bem... colega de trabalho! Mariana Godoy. Fomos professores no ginásio Salvador Dali.

— Ah! A professora de história?

— Isso, posso falar com ele?

— Vi o seu nome na agenda dele, tentei ligar, mas não consegui falar com a senhora.

— Eu mudei e não tive oportunidade de dar meu novo telefone.

— Pena, teria sido avisada.

— Avisada?

— Sim, infelizmente o Guilherme faleceu já faz seis meses.

— Não acredito, como isso aconteceu? Era tão jovem!

— Um infarto fulminante.

— Ah!

Ficou tão chocada com a notícia que deixou o telefone cair. O seu coração começou a disparar, correu para o aparelho que mede a diabetes. O número era astronômico. Entrou em desespero, tomou uma dose dupla de todos os remédios, se meteu num táxi e baixou no pronto-socorro, levando uma camisola velha e o chinelo horroroso numa sacola do supermercado. Não dava tempo para mais nada!

Dois dias depois, refeita, voltou para a casa, com uma nova receita de remédios e tratou de comprar para uns seis meses, além de tinta para tingir os cabelos brancos, antes que o cartão de crédito fosse cortado.

O caderno escolar agora tem um lugar cativo na sala, anota as receitas naturais e outras que acha interessantes que pega pela televisão, recomendáveis pra quem é cardíaca, diabética e hipertensa.

Toda manhã, na caminhada diária, ajusta o anúncio no portão da casa: "Aulas particulares de história. Preço abaixo do mercado. Aceito bicicleta ergométrica usada em pagamento, ou aparelhos de ginástica em bom estado."

Sandra Falcone

http://sandrafalcone.blogspot.com/2008_01_23_archive.html
www.sandrafalcone.com.br

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