TEXTOS DO AUTOR

O REGIME DO AUGUSTO

Em "O regime do Augusto", texto genial de Carlos Eduardo Novaes, fica claro que o cronista foi testemunha ocular das artimanhas de Pinochet. E Figueiredo se viu envolvido direitinho na estratégia improvisada do ditador chileno.

Antes de você saborear “O regime do Augusto”, de Carlos Eduardo Novaes, convém relembrarmos quem era João e quem era Augusto. Caso não se interesse, pule essa parte e vá direto ao assunto, usando a barra de rolagem.

FigueiredoJoão Baptista Figueiredo (1918-1999) foi presidente brasileiro depois de Geisel e antes de Sarney. A ditadura não se sustentava mais. Afundava. Crise econômica, com inflação, diminuição do crescimento, aumento da pobreza. Figueiredo promoveria a abertura política. Era final da década de 70. E Figueiredo seria presidente de 1979 a 1985. Já na passagem do governo Geisel para o de Figueiredo, estava ficando claro que a ditadura estava acabando. A palavra da moda era abertura, especialmente abertura política. “Foi só Geisel abrandar a censura para que os escândalos de corrupção no governo começassem a pipocar.” Com tudo isso definhava a confiança da população no governo. Qualquer que fosse a eleição, o MDB ganhava mais votos do que a Arena. Começava a restauração da democracia no Brasil. E a sociedade civil se mobilizava: surgia uma nova tática de enfrentamento, com mais maturidade, com substância (ver Cultura Brasil).

Abramos um parêntese. Vale a pena dizer que após o AI-5, em 1968, a situação política havia se agravado: a repressão militar ficava mais forte. As músicas de Chico Buarque de Hollanda foram excelentes formas de protesto quanto ao que ocorria no país. A música “Apesar de você” foi lançada em 1970 (gestão de Médici ) e se tornou um grande sucesso, uma espécie de hino de resistência à ditadura. Ela despertou a ira dos militares, que a vetaram depois de sua liberação inicial, mandando recolher todas as cópias e proibindo sua execução.

Chamado a se explicar quanto às expressões utilizadas na letra, especialmente a "quem" ele se referia quando falava de "você" (Apesar de você, amanhã há de ser outro dia...). Sua explicação, tão irônica quanto pouco convincente, foi de que "se tratava de uma mulher muito dura e autoritária". Isso lhe valeu a antipatia imediata e a perseguição por parte dos militares. Tendo ido à Itália com a esposa Marieta Severo, a trabalho, foi informado de que seria preso ao regressar. Resolveu permanecer em terras italianas até poder retornar em situação mais tranqüila. (ver Puc-Rio)

Voltemos a João. Último presidente do regime militar, o general-de-exército João Figueiredo marcou seu governo por um jeito rude de fazer política, o que não impediu que, ao fim de seu mandato, fosse concluída a transição para a democracia. Mesmo realizando um governo menos autoritário que antecessores como Emílio Garrastazu Médici (1969-74), ele jamais foi um presidente popular. A tentativa de caracterizá-lo como o “João do Povo” fracassou, entre outros motivos, por seu temperamento. Por exemplo, em 1978, antes mesmo de assumir o cargo, soltou a seguinte afirmação: "Prefiro o cheiro de cavalos ao cheiro do povo".

Concluído o seu mandato, em 1985, Figueiredo entregou a José Sarney um país em crise, mas que vivia a expectativa de uma democracia adiada por 21 anos. Recusou-se a entregar a faixa presidencial a Sarney na transmissão – Tancredo Neves havia sido internado na véspera e nunca viria a exercer a Presidência. Na posse do ex-aliado Sarney, deixou o Planalto pela porta dos fundos. (ver Uol JC)

PinochetAugusto Pinochet (1915-2006) foi presidente-ditador chileno de 1973 a 1990.

Pinochet passou os últimos anos de sua vida morando em Santiago e enfrentando acusações de abusos aos direitos humanos e fraudes cometidos durante os 17 anos em que esteve no poder. Sob seu regime, mais de 3 mil pessoas foram mortas por sua polícia secreta. Apesar das acusações, o general não chegou a ir a julgamento, já que sua equipe de defesa sempre alegou que sua saúde era muito frágil para que ele enfrentasse o processo judicial. Quando completou 91 anos, Pinochet divulgou um comunicado afirmando que assumia a "responsabilidade política" pelos atos cometidos durante seu regime, mas que a única razão para suas medidas era "fazer do Chile um grande país e evitar a desintegração".
Pinochet enfrentava processos por crimes de violações dos direitos humanos, fraude ao fisco e uso de passaportes falsos no chamado Caso Riggs, aberto após a descoberta de contas secretas no exterior, nas quais ele acumulou fortuna de US$ 27 milhões, cuja origem não foi determinada. (ver Folha)

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O REGIME DO AUGUSTO

Carlos Eduardo Novaes (in Democracia à vista. Rio de Janeiro: Nórdica, 1981).

A viagem do Presidente João ao Chile envolve riscos muito maiores do que se poderia esperar de um encontro entre dois Chefes de Estado. O governo vem-se esforçando para exibir uma face democrática diante da comunidade internacional e sabe que para preservá-la não deve mostrar em nenhum momento que apóia politicamente o truculento regime do Augusto. Qualquer deslize pode ser fatal. Para evitá-los foi que psicólogos e comunicólogos da Secom passaram duas noites trancados com o Presidente, depois do expediente, ensinando-o a como se comportar durante sua estada no Chile.

— Lembre-se, Presidente, que as câmaras de televisão de todo o mundo estarão apontando para o senhor à espera de um gesto que possa comprometê-lo com o regime de Augusto. Por favor, não estrague a nossa imagem no exterior. Seja frio, distante, indiferente, cerimonioso...

— Sim, sim, isso eu já sei. Agora vamos recapitular do início. O meu avião aterrissa em Santiago, abrem a porta, eu apareço, começo a descer as escadas e aí? Que é que eu faço?

— Bem, o General Augusto estará parado esperando.

— Eu vou logo a ele?

— Não, não. É melhor passar direto. Finja que não o reconhece. Passe direto e deixe que o chamem. Aí o senhor vai a ele e fala com uma estudada displicência: “Ué, o senhor estava aí? Sabe que eu nem reparei...”

— Tudo bem — concordou o Presidente —, eu vou a ele, falo isso que vocês mandaram, estendo-lhe a mão e...

— Não! Nada de apertos de mão. O General Augusto pode ser muito efusivo e a imprensa internacional vai explorar essa foto. Procure falar com ele à distância. Qualquer coisa, diga que o senhor está muito gripado e não quer lhe passar gripe.

— Tudo bem. E devo sorrir ao cumprimentá-lo?

— Não. Sorrir nunca. O sorriso pode ser interpretado como uma manifestação de apoio ao regime. Mostre sempre aquela cara dura de quando o senhor era chefe do SNI.

— Acho que não sei mais fazer aquela cara — desculpou-se o Presidente.

— Sabe. Sabe sim. O senhor passou tantos anos com ela... Impossível que já tenha esquecido. Leve seus óculos escuros.

— Tudo bem. Eu vou tentar. Agora quero saber como é que eu saio do aeroporto. Vou no mesmo carro que o General Augusto?

— Esse é o problema — disse o homem da Secom, lamentando-se. — O ideal é que cada um saia no seu carro para evitar insinuações da imprensa internacional.

— Bem, eu posso sair a cavalo — disse o Presidente, querendo ajudar. — Peço ao nosso embaixador para levar um ao aeroporto.

— Não vai pegar bem. Infelizmente, o senhor terá que ir no carro com ele. Mas procure ficar bem na outra ponta do assento e vá o tempo todo olhando pela janela para que a imprensa veja bem que o senhor não está a fim de muito papo com o General.

Os homens da Secom lembraram ao Presidente mais uma vez que ele estava indo ao Chile apenas para tentar vender os produtos brasileiros. E pediram que o Presidente evitasse grandes explosões de entusiasmo e amizade pelo General Augusto.

— Limite-se, Presidente, a conversar sobre negócios.

Acontece que, do outro lado da Cordilheira, o General Augusto só está interessado em conversar sobre política. A visita do Presidente de um país em vias de democratização — o primeiro nos sete anos de ditadura do Augusto — é importante como aval para o regime chileno.

— General Augusto, eis aí uma oportunidade que caiu do céu — disse-lhe um homem do seu staff. — O senhor não pode perder essa chance. O Presidente João é o primeiro mais-ou-menos-democrata que aparece por aqui nesses sete anos. Talvez demore mais sete anos até que apareça outro. Agarre-se a essa oportunidade! Agarre-se ao Presidente João!

E foi exatamente o que o General de lá procurou fazer quando o General de cá desceu no aeroporto de Santiago. Foi uma cena patética (que não vai aparecer na televisão): o General de lá discretamente tentando agarrar o General de cá que se esquivava passando por trás da guarda formada, entrando pelo meio da banda de música, enquanto o homem da Secom, misturado com os repórteres, chamava a atenção da imprensa internacional:

— Vocês estão vendo, não é? Vocês estão vendo bem! O nosso Presidente não quer saber de intimidades!

— Vem cá, João, vem cá — chamava o General Augusto, perseguindo o General João entre os componentes da banda. — Vamos tirar uma foto abraçados, vem!

— Abraçados, não — cochichou o homem da Secom no ouvido do nosso Presidente. — Olha a nossa imagem no exterior, Presidente. Pelo amor de Deus, abraçados, não!

— Vem, João. Vem cá! Os fotógrafos estão esperando. Vamos mostrar os fortes laços de amizade que unem o Brasil e o Chile. Vamos tirar uma foto abraçados.

— Abraçados, não — respondeu João, falando por cima do ombro do homem da tuba. — Abraçados, não, Augusto. Essa foto pode cair nas mãos da minha mulher, vai pegar mal, nós dois abraçados.

Na primeira reunião de trabalho, com toda a imprensa internacional presente, Augusto sentou-se na cabeceira, puxou uma cadeira para perto e fez sinal para que João sentasse ao seu lado. João olhou para o homem da Secom que lhe fez um discreto sinal de “não” com o dedo. João foi sentar-se na outra extremidade.

— Estou achando você estranho, João — reclamou Augusto, muito doce e meigo. — Você está me evitando?

— Quem? Eu? Que bobagem, Augusto, nem pense nisso — disfarçou João. — Sentei aqui porque gosto de esticar as pernas debaixo da mesa.

O homem da Secom foi até o Presidente João e alertou-o novamente para tomar todo cuidado, para medir bem as palavras “porque qualquer deslize pode ser fatal”. Lembre-se, Presidente, disse o funcionário, que o General Augusto vai fazer tudo para faturar politicamente a sua visita.

— Fique tranqüilo — disse João. — Ele não vai me pegar. Conheço todas as jogadas desses ditadores.

Augusto levantou-se da sua cabeceira e dirigiu-se ao João com um documento, para pegar sua assinatura.

Peraí, deixa eu ler antes, Augusto. — João leu, e antes de assinar dirigiu-se à imprensa internacional agrupada, atenta, num canto, sacudindo o documento. — Ei, pessoal. Isso aqui é só um acordo de cooperação nuclear, hein! Vejam lá o que vocês vão dizer...

Chegou um momento em que Augusto não agüentou mais. Chamou João num canto da sala e falou baixinho para que a imprensa internacional, de ouvido em pé, não ouvisse:

— João, eu queria lhe pedir um favor. Não dá pra você quebrar um galho pra mim? Você é um cara que entrando agora numa democracia... Quem sabe você não poderia dizer alguma coisa apoiando o meu regime? Uma coisinha à-toa, nada demais...

— Augusto, eu sinto muito, mas você sabe que eu vim aqui para tratar de negócios. Tenho 140 empresários comigo...

— Mas é importante para mim, João.

— Depois a gente vê isso, Augusto — e desconversou. — Você não quer ver o nosso mostruário? Não quer ficar com uns tratores? Uns ônibus? Patins? Armas?

— João, me ajuda — implorava Augusto. — Nós vamos assinar 12 documentos. Mais um, menos um, não faz diferença... Vamos assinar um documentozinho político; cinco, seis linhas só... Vamos?

— Sinto muito — disfarçou João —, eu não entendo nada de política. Sou apolítico. Vamos falar sobre outra coisa, Augusto... Estou achando você bem mais magro.

— Eu estou fazendo regime pra emagrecer.

— Eu também estou precisando fazer um — comentou João, batendo na barriga, feliz porque tinha conseguido mudar o rumo da conversa.

— Quer que eu diga como é que estou fazendo?

— Claro, claro. Você está muito bem — disse João, medindo Augusto de alto a baixo. — Pelo menos estou podendo observar, o seu regime é ótimo.

— O quê? — perguntou Augusto, fingindo que não ouvia.

João então falou mais alto.

— Eu disse que estou achando ótimo o seu regime!

No mesmo instante, toda a imprensa internacional se despencou da sala e saiu correndo para o telex. Dia seguinte, os jornais do mundo inteiro anunciavam: “Presidente do Brasil acha ótimo regime chileno”.

Carlos Eduardo Novaes nasceu no Rio de Janeiro-RJ, em 1940. É cronista, romancista, contista e dramaturgo. Quando fez Direito em Salvador, exerceu variadas atividades profissionais, das quais se orgulha – agente rodoviário, dono de dedetizadora, sócio de uma fábrica de sorvete. No Rio, iniciou em 1969 a atividade de cronista. Em 1972, estaria no Jornal do Brasil, criando prognósticos bem-humorados para a Loteria Esportiva, passando depois a cronista. Seu primeiro livro viria em 1974: O caos nosso de cada dia, uma reunião de crônicas escritas para o JB. O trabalho nesse jornal se estendeu por 13 anos, dando origem à maior parte de seus livros. No teatro, além de atuar, escreveu e dirigiu várias peças. Seus livros abordam, entre outros, temas ligados à política brasileira, ao cotidiano urbano, à vida conjugal e ao universo adolescente, sempre de forma crítica e bem-humorada. É diretor da Casa do Riso, no Leblon, um teatro dedicado exclusivamente ao humor.

De estilo provocativo e humor mordaz, os livros de Carlos Eduardo Novaes se espalharam pelo mundo com muita facilidade, firmando o autor como um de nossos mais aclamados escritores. Quando no JB, suas crônicas fizeram a história divertida da cidade, do país e do mundo, trazendo sempre o colorido marcante de seu humor inteligente e crítico, muitas vezes de uma sutileza que aborrece muita gente. Sua verve espirituosa e de grande alcance popular para abordar os assuntos do cotidiano já lhe causou prejuízos profissionais, como a demissão do JB e o exílio profissional como cronista durante longos períodos. Uma lástima para seus leitores e admiradores.

Autor de mais de 30 livros, colaborador de revistas aqui e no exterior, seus textos viajaram e conquistaram fãs em locais tão longínquos quanto surpreendentes.

Escreveu "Chega mais", telenovela da Globo, em 1980. Foi vencedor do Festival Brasileiro de Curta-Metragem promovido pelo JB em 1970. Chegou a dar aulas de teatro e literatura na Uerj. Hoje desenvolve o projeto do jornal da Universidade Estácio de Sá. Em suma, um homem multidisciplinar.

Mais sobre o autor:

Carlos Eduardo Novaes

Itaú Cultural

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