TEXTOS DO AUTOR

Redassão, um ato de ex-crever

Querem acabar com esse negócio de livros: jovens prum lado e livros pro outro. E é Carlos Eduardo Novaes que nos traz os argumentos engraçadíssimos de Ouriço Júnior, um vestibulando singular.

Na hora de me autorizar a publicar seu texto em Além da Revisão, Carlos Eduardo Novaes usou de gentileza bem objetiva: “autorizo”. E fim.

Ao dizer recentemente a ele que publiquei apenas alguns parágrafos de uma crônica sua, esquecendo-me de informar que eram só “fragmentos” – eu estava preocupadíssimo com isso –, ele simplesmente disse “tudo bem”.

Eu que já era fã, fiquei mais ainda.  Acho que esse desprendimento é próprio de quem tem muito mais coisas importantes a que se dedicar, do que perder tempo com detalhes... Passem os olhos na biografia dele e logo vão entender do que estou falando –http://www.carloseduardonovaes.com.br/base_idiomas.htm

Cronista, romancista, contista e dramaturgo, Carlos Eduardo Novaes é mestre em produzir textos de qualidade e ainda acessíveis ao grande público.

Em Redassão, um ato de ex-crever, Novaes revela como sempre um humor de primeira linha. Dessa crônica,  extraímos fragmentos que compuseram a página 74 de Além da Revisão. A ilustração que não publicamos, do ilustrador experto Vilmar Rodrigues, comparece agora em nosso site¸ para demonstrar que a parceria Novaes-Rodrigues é muito afinada.

Antes de você, internauta, se deliciar com Redassão, um ato de ex-crever, saiba que na quarta capa de Democracia à vista, de 1981 (livro em que se insere a crônica), o editor nos diz da alegria e da graça que extravasam da obra. Ao dizer que Novaes é autor em busca de sorrisos que brotem da consciência crítica das pessoas, faz um desafio:

“Se você não rir, pelo menos 32 vezes [é o número de textos], pode voltar à livraria que nós trocamos o seu livro por um discurso do Delfim Neto”.    

 

REDASSÃO, UM ATO DE EX-CREVER

Carlos Eduardo Novaes

 

OvniProva de redação de Ouriço Jr., incluído entre os 8% dos vestibulandos que ainda conseguem pensar alguma coisa, em ordem.

Tema: “São freqüentes os comentários sobre a falta de hábito de leitura dos jovens. Como você vê este problema? Que fatores estarão dificultando o encontro dos jovens com o livro?”

 

Como eu vejo este problema? Eu não vejo. Num tá com nada quem andou espalhando por aí que nós não temos hábito de leitura. A gente não tem hábito por causa que ninguém escreve pros jovens. Uma vez, em 1977, eu entrei numa livraria e só tinha livro pra adulto e pra criança. Aí eu pedi um livro pra mim e o vendedor trouxe um, dum cara chamado Robson Cruzeiro que morava numa ilha deserta e teve um caso com um índio. Aí eu disse pro vendedor: escuta meu irmão, isso não tem nada a ver, eu moro na Barata Ribeiro e não tem índio em Copacabana.

Não manjo muito de fatores não, mas esse deve ser um. No cinema é a mesma coisa: só tem filme pra criança ou pra adulto, no teatro idem, idem. Então se a Cultura não quer nada com a gente, a gente vai pro Consumo que dá pra gente a maior cobertura.

Acho que os jovens e os livros transaram um encontro errado: os jovens foram prum lado e os livros pro outro. Mas os adultos é que devem responder a essa pergunta. Se vocês, caras, que são adultos não sabem, se soubessem não tavam perguntando, que dirá eu que nunca li nem um livro de cheque. Aliás, achando esse tema muito devagar. Livro não com nada. Meu avô me disse que o mundo era muito melhor quando não havia livros. Os astecas nunca leram um livro e fizeram uma civilização porreta. Os incas também nunca entraram numa livraria. Deviam mais era pegar esses caras que se metem a escrever livros e jogar na lavoura. Se por cada página de livro fosse plantado um pé de tomate tava resolvido o problema da fome. Depois que todo mundo acabasse de comer aí então a gente ia fazer a digestão lendo um livrinho que podia ser, deixa eu ver se me lembro de algum? Ah, sim, podia ser o Livro de Ouro da minha avó.

Acho também que a falta de hábito de leitura é por causa que ler não é fácil. Ler é uma transa muito complicada. Tanto é, que no Brasil tem mais de 50 milhões de pessoas que não sabem ler. A gente tinha que mudar esse alfabeto. Fazer umas letras e umas palavras que o analfabeto também pudesse entender. Esse alfabeto é muito careta, antigão e quadrado. O mundo mudou muito nestas últimas décadas só o alfabeto continua o mesmo. Eu não agüento mais. A televisão que começou muito depois do livro mandando ver. Há dez anos que a gente já tem tevê a cores. O livro continua em preto e branco. A gente abre, é aquela coisa monótona, as páginas brancas e as letrinhas pretas. Só a capa é que é bonita. Por isso eu só gosto de ler capa de livro. Acho que os jovens iam ler muito mais se os livros só tivessem capa.

Os livros são um negócio muito antigo. Desde que foi impresso o primeiro, se não me engano, a Bíblia de Jesus Cristo que eles têm o mesmo formato. Por que não fazem livros redondos? Por que não imprimem histórias em papel de parede? Os americanos estão imprimindo livros em papel higiênico. Por que não escrevem um livro numa prancha de surfe? Por que ainda hoje as histórias têm que ser impressas nos livros, como na época do Gutemberg Guarabira? Uma linha embaixo da outra? Eu que vivo a mil e só sei ler pulando de três em três linhas fico todo baratinado. Também acho que esses escritores escrevem demais. No dia em que eu entrei na tal livraria tinha livro, podes crer, de 400 páginas.  Ninguém mais tem tempo pra tudo isso. Eu queria aproveitar pra dar um plá pros escritores e pedir pra ver se dá pra resumir tudo em uma, duas, três páginas no máximo, assim todo mundo ia ler às pampas.

O problema é que além de escrever muito, esses intelectuais escrevem muito difícil. Meu professor disse que nunca viu um livro onde tivesse escrito: sem essa, é isso aí, bicho, pintou um bode. Os nossos escritores ainda escrevem em latim ou português arcaico. Tem vezes que eu abro um livro e não manjo nada. Aí tenho que pegar um dicionário. Vocês já sentiram o peso de um dicionário? Não é mole ficar andando com um livro e um dicionário para lá e pra cá. Aí eu desisto. Os escritores têm que entrar na nossa.  Se escreverem na nossa língua não vão precisar mais do que 30 palavras pra resumir tudo.

Outro problema é que os livros são muito caros. E por que são caros? O professor me disse que é por causa do preço do papel. Por que os editores não fazem livros de plástico que é mais barato? Mas eu não acredito muito nesse papo não, porque o disco também é caro e vende adoidado. A televisão também é cara e lá na minha casa tem três aparelhos (e dois livros). A questão é que o livro  superadão. Como os discos é que vendem, eu se fosse escritor ia gravar meu livro. Tem um papo aí que a televisão atrapalha a leitura.  Todo mundo gosta de ver televisão. Por que então os editores não sacam uma e inventam uma televisão literária? Um  aparelho, já andei bolando, em que você enfia um livro dentro e vai virando os canais: cada canal é uma página.

desconfiado que esses editores não têm a menor criatividade. Já que os livros estão caros por que não vendem páginas descartáveis? A gente ia poder entrar numa livraria e pedir: me dá aí 10 páginas da Divina Comédia do Grande Otelo e meia dúzia de páginas do Que é isso, Meu Chapa? do Otávio Mangabeira. Lá na minha casa todo mundo lê. Minha avó lê bula de remédio, minha irmã que desempregada lê os anúncios dos classificados e eu me amarro em ler inscrições nos muros. Já li todos os muros e paredes do Rio. Isso dá quase um livro não dá? A mais viva de todas é a minha tia, que só lê mão — e ainda ganha dinheiro pra isso. A única que lê livro mesmo é minha mãe. Ela é considerada a intelectual da família.  Toda vez que vai visita jantar lá em casa ela pega um livro e vai ler na cozinha.

In Democracia à vista. Rio de Janeiro: Nórdica, 1981

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