TEXTOS DO AUTOR

GROGOTÓ

Mineiro de Araxá, Evandro Affonso Ferreira é livreiro em São Paulo, cidade na qual mora há mais de 40 anos. "Grogotó" é seu primeiro livro de contos. No texto excelente, a pontuação é própria. O ritmo, vertiginoso.

Ímpeto

Eu já vivia com os meus avós havia dois anos numa vila da Zona Sul quando ele foi  morar na casa ao lado; menina de tudo, adolescente, tinha aprendido nas fotonovelas que príncipe encantado é assim mesmo, feito balão, cai de repente no quintal da nossa casa; foi amor à primeira vista, como se dizia naquela época; não sei se essa expressão ainda existe, mas isso agora não importa absolutamente nada, não sou escritora pra ficar me preocupando se essa ou aquela expressão caiu em desuso, dane-se; importante é dizer que assim que bati o olho nos olhos do novo vizinho senti arrepios na espinha, ora, as fotonovelas costumavam falar em sininhos, outras coisas, menos arrepios na espinha, hã, hoje entendo o prenúncio dos tais arrepios; boa noite, o prazer é todo meu, ah, sim, também gosto muito dele, acho Elvis Presley o máximo; primeiro beijo aconteceu quase na metade dum filme dele, o rei do rock. Começou o namoro; três quatro meses depois surgiram as implicâncias; atravessa a rua direito, burra; não sabe fazer conta de somar não, idiota?; quiser não se escreve com z, burra; veio o noivado; não é Plutão, burra, é Platão, eh-eh, pra ela Plutão Platão Plutarco, tanto faz, tudo a mesma coisa; eu, resignante, a submissão em pessoa, dava o calado como resposta, pois meu amor era muito maior que a estupidez dele, meu príncipe encantado que considerava minha cabeça um ornamento de pouco valor; veio o casamento; trava direito a porta do carro, burra; bife sangrando demais, burra; que vergonha, mulher, você disse Monéte na frente dos meus amigos, é Monê, burra; eu, conforme já disse, repito, não dizia chus nem bus, ia trilhando serenamente meu caminho; veio a gravidez; tomou pílula não, burra?; nosso filho nasceu; dobra direito essa fralda, mulher; ele, meu marido, filho do Sol e neto da Lua, pegou amor pela boemia, pintou a saracura, chegava quatro cinco seis horas da manhã todo santo dia; com o tempo fui ficando experta em matéria de perfumes, pois cada semana ele, meu príncipe encantado, chegava com um cheiro diferente, além do bafo de álcool, claro; cuidado, querido, bebida demais cigarro demais friagem demais, cuidado, eu dizia, profundamente preocupada; ele, meu príncipe encantado, virava pro canto da cama e caía nos braços de Morfeu; você esqueceu de dar corda no relógio outra vez, pombas, além de miolo mole, memória fraca; nosso menino cresceu, virou rapagão bonito, pena que perdeu o pai na flor da idade; ontem, mês e meio depois da viuvez, que sensação estranha, estranha mesmo, repito, não sei explicar direito, mas, de repente, mandei a minha resignação para as profundas do inferno, chutei cruz vaso flor terra, chutei tudo pro alto, depois gritei desesperada, bem feito! Bebeu demais fumou demais farreou demais; burro, burro, burro!

 

Evandro Affonso Ferreira (em Grogotó, p.75. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000) 

 

 

Imprecação

Faço ouvidos de mercador sempre, ligo a mínima, Ei, juiz bichona tirei sua mãe da zona; sigo em frente, me faço de esquerdo, torcedores são todos igualmente passionais, cunha do mesmo pau, Ei, juiz gatuno duma figa seu pai é cafetão sua mãe é rapariga; ora, faço ouvidos moucos sempre, sou pago para prestar atenção no jogo propriamente dito, Ei, juiz safado cara de fuinha seu irmão é veado sua filha é galinha; essas chacotas não me deixam emborrascado, você sabe, levo pro lado da gaiatice, mas hoje... desculpe, querida, não estou conseguindo de jeito nenhum, refrão daqueles 50 e tantos mil torcedores continua caraminholando na cabeça, Que o juizinho ladrãozinho dos meus ais não tenha ereção nunca jamais.

 

Evandro Affonso Ferreira (em Grogotó, p.69. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000) 

 

Deus Meu!

Ai Cristo! Olhai para isto, tempos desditosos, cruzes, povo cada vez mais incréu, descrito, vivendo a Deus e à aventura, bom, vamos em frente, não abro mão da pontualidade, missa das dez começa às dez, sempre, mesmo com quatro gatos-pingados.

 

Evandro Affonso Ferreira (em Grogotó, p.83. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000) 

 

 

Tantofonia

Silêncio quando é quase enlouquecedor abro este baú, mexo um tempão nesta catrevage toda, veja, dedal caixinha de música postais porta-retrato caixinha de rapé pincenê caneta-tinteiro, herdei da minha avó, brogúncias sem-fim, mais útil deles é este chocalho, sim madre, barulhinho intermitente que a senhora ouve todo santo dia vem daqui da minha clausura, verdade, silêncio quando é quase enlouquecedor, chiquichiquichiquichiquichiqui.

 

Evandro Affonso Ferreira (em Grogotó, p.60. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000) 

 

 

Suspicaz

Você anda muito desconfiante, querida, muito desconfiante, sinto isso no fundo da alma, de mais a mais é preciso dizer que não existe homem em tais condições inteiramente fiel, não existe, nem mesmo Diógenes com sua lâmpada conseguiria encontrá-lo em plena luz do dia, de modo que você precisa acabar de vez com isso, querida, do contrário, não lhe trarei outras flores no próximo finados.

 

Evandro Affonso Ferreira (em Grogotó, p.42. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000) 

 

 

Taedium Vitae

Desempregado, time caiu pra terceira divisão, artrite cada vez pior, senhorio no encalço, dor intermitente no peito, geladeira vazia, mulher com caroço esquisito no seio esquerdo, filho drogado, xi, mais essa, válvula da descarga quebrou.

 

Evandro Affonso Ferreira (em Grogotó, p.43. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000) 

 

 

Bacafuzada

Um surumbamba que só vendo, tentei forçar porta da sala, neca, trancada, sete chaves, coisa assustadora, mãe três filhos menores parece, todos gritando alucinados mais barulho de vidro estilhaçando tudo vindo abaixo mundo caindo lá dentro coisa pavorosa, ele, marido, uivando, agüento mais não cambada de merdas vocês venceram pronto fiquei louco de vez vou quebrar tudo matar todos, tentei arrombar mas porta resistente demais nem tchum,  chamei vizinho brutamontes, um dois três lhufas, cedro talvez, faz isso não papai pelo amor de Deus,tau, tau, tau, monstro assassino você matou nossos filhos, outra vez, um dois três catrapus, tragédia coisa nenhuma, amigo, encontramos velhinha sentadinha em frente televisão gigantesca moderníssima, trezentas mil polegadas por assim dizer.

 

Evandro Affonso Ferreira (em Grogotó, p.23. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000) 

 

 

Mangrorra

Semana inteira daquele jeito, como um burro olhando para palácio, querido, futebol vai começar, neca, nenhum sinal de vida, vem, macarrão ficou gostoso que só vendo, qual nada, sopinha de aspargo de vez em quando, sono, muito sono, veja, macambuzice tomou conta do infeliz, semana inteira daquele jeito, desde que se aposentou, está sentindo muito falta, vou pedir pro ex-chefe lá do cemitério deixar o coitadinho do meu marido enterrar de vez em quando algum defunto, vou sim.

 

Evandro Affonso Ferreira (em Grogotó, p.74. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000)

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