Santos Dumont no mundo espiritual: dificuldades e oportunidades

Em flagrante e crescente desequilíbrio físico e psíquico, Santos Dumont regressava da França em 1931. Instalava-se perto de São Paulo, cercado das atenções de familiares.

Aristides Coelho Neto *

Nos idos de 1930 o Brasil vivia o chamado Estado Novo. O governo Vargas seguia o modelo dos regimes despóticos que vicejavam na Alemanha, na Itália, em Portugal. Nessa época, Alberto Santos Dumont não estava bem. Em flagrante e crescente desequilíbrio físico e psíquico, regressaria da França em 1931, para instalar-se perto de São Paulo, cercado das atenções de familiares. Alguns diriam até que obteve melhoras no estado depressivo.

Em 9 de julho de 1932, eclodia a revolução constitucionalista em São Paulo e Santos Dumont entusiasmava-se com o movimento e a idéia de ver restabelecida a normalidade democrática. Essa a aspiração de diversas forças políticas de então. Na manhã de 23 de julho de 1932, Alberto mantém-se na rotina de ir à praia do Guarujá. Conta-se que nesse dia ajuda um menino a resolver problemas para empinar um colorido papagaio de papel. Corrige a dimensão da cauda, endireita uma vareta que afetava a estrutura, e o papagaio ganha as alturas. O menino, alvoroçado, bate palmas, enquanto Dumont sorri. Mas quem contemplasse o céu nesse instante assinalaria pontos no horizonte que iriam crescendo e crescendo, em meio a um ruído de motores. Em poucos instantes surgia uma esquadrilha. Eram aviões prestes a bombardear um cruzador paulista ancorado no porto de Santos. Seu invento servia para que brasileiros matassem brasileiros. Uma máquina que ele criara com tanta dedicação aperfeiçoava-se para espalhar a destruição e a morte. Santos Dumont vai para casa e nessa mesma noite se suicida. 1

Encerra-se a existência na Terra do homem introspectivo, solitário, de poucos amigos,  sempre complexado pela aparência física, neurastênico, angustiado, acanhado nos discursos, acabrunhado com a disfunção sexual. Fizera seu último vôo em 1909. E empreende a partir de agora um novo vôo sombrio e doloroso, em função do ato tresloucado.

O que se passa com o nosso Ícaro na vida espiritual, depois do ato impensado de tamanha magnitude, o suicídio, está no livro Ícaro Redimido (Ed. Inede), de autoria do espírito Adamastor, um médico que viveu na França. A obra é psicografada pelo também médico Gilson Freire. Estamos muito acostumados com Divaldo e Chico Xavier como os nossos médiuns,  responsáveis, confiáveis, irreprimíveis. Chico já se foi. Divaldo certamente irá um dia. E temos de passar a nos acostumar com outros intermediários, na continuidade da tarefa de intercâmbio esclarecedora. E é pela razão e bom senso que devemos afiançar a qualidade e a fidedignidade de um trabalho e do que nos vem por intermédio de qualquer médium. Kardec assim fez e recomendou. E foi assim que avaliei o livro mencionado. Nessa linha sondei o médium Dr. Gilson Freire. Não bastou ele dizer a mim, com sua inconteste humildade, que é “quase impossível fazer qualquer trabalho impecável, em decorrência não só da ignorância que ainda viceja em nossa alma como das dificuldades do nosso idioma”. E dizer ainda que “as idéias inéditas que o livro contém não são verdades absolutas e inquestionáveis”. Todos sabemos dos problemas de filtragem mediúnica que permeiam as obras ditadas pelos espíritos. E todos sabemos que os espíritos são gente como a gente. São falíveis. E estão no mesmo processo de crescimento evolutivo que nós. Mas me arvoro a dizer que em obra da profundidade de Ícaro Redimido, pelos conhecimentos que percebemos que o médium tem – na qualidade de espírita dedicado, estudioso, culto, e ainda médico –, este só deve ter enriquecido os relatos de Adamastor, o autor espiritual.

Recomendo enfaticamente a leitura de Ícaro Redimido não só por nos apresentar uma nova perspectiva do que foi a existência de Santos Dumont, com seus problemas, limitações e atitudes de arrojo. Sugiro porque a obra traz de forma muito didática todo o encadeamento das vidas pregressas de Alberto – na condição de Zennon (o Senhor dos Canhões) e como  Bartolomeu Lourenço de Gusmão (o Padre Voador e dos Inventos) –, determinantes obviamente do drama que viveu o nosso herói. Na questão do atentado contra a própria vida, aparentemente com raízes na depressão, fica evidenciado fortemente que nenhuma doença justifica qualquer ato impensado, já que nossos atos equivocados é que nos levam a adoecer.  O assunto a meu ver, em Ícaro Redimido, é dissecado de forma bem mais digesta que aquela encontrada em Memórias de um suicida, 2 pondo o leitor em contato com um verdadeiro tratado sobre transtornos depressivos e sua conexão com o egoísmo e a arrogância.

A leitura de Ícaro Redimido desfaz alguns mitos. Teria sido realmente Alberto Santos Dumont o detentor dos méritos da invenção do avião? Ou tudo foi fruto de um intenso trabalho no mundo espiritual, que exigiu colaboradores em várias partes do mundo? E foi realmente um pacifista que se surpreendeu com os desvios na utilização do avião? Essas questões podem ser elucidadas quando da leitura da obra.  E que o leitor se prepare para uma viagem fecunda sobre os temas da melhoria moral, da necessidade de valorização da vida e das oportunidades do caminho, na escalada rumo a Jesus e ao Pai Criador.

A vida de Santos Dumont assim relatada, agora portanto sob uma nova ótica, traz ainda conceitos altamente esclarecedores sobre a autodestruição. E sobre a ovoidização, que Santos Dumont estaria perto de experimentar por conseqüência de seu auto-aniquilamento. A narração nos põe ainda em contato com os bastidores horripilantes da Segunda Grande Guerra. E apavora o leitor tabagista, ao detalhar a chamada Câmara dos Cianóides no mundo espiritual.  Esclarece-nos como funciona a energética do psiquismo e as patologias perispirituais. Esmiúça quanto às  raízes de amizades aparentemente inexplicáveis, e quanto ao entrelaçamento de destinos de almas afins, exaltando sempre como funciona a Sabedoria Divina nesse processo intrincado – ou simples? já que nós é que complicamos? – da nossa existência.

A terapia da regressão no plano espiritual utilizando-se a indução hipnótica é valorizada também nessa reportagem do autor espiritual Adamastor, diante do paciente desmemoriado Alberto, já sem as vestimentas carnais. E somos surpreendidos ainda, no desenrolar do processo de auxílio ao nosso Ícaro, encampado por abnegados amigos, no qual a reencarnação é instrumento de recomposição plástica e psíquica, até mesmo na frustração da gestação, em que os sofrimentos do aborto funcionam como elementos regeneradores para os partícipes.

Em meio a tantos ensinamentos importantíssimos, valeria a pena dizer do que mais particularmente me impressionou nessa obra de peso. Chama minha atenção o fato de que perdão e trabalho são elementos importantíssimos e indispensáveis em qualquer processo de regeneração. E também o detalhe de que todo socorro por parte da Providência Divina chega no tempo devido. Todos os protagonistas na história de Santos Dumont eram criaturas falíveis. Até mesmo nos relatos já na dimensão espiritual, tanto os benfeitores quanto os assistidos eram pessoas passíveis de erros e enganos. Isso fica claro no desenrolar dos acontecimentos. E fica mais luzente ainda que queixas e lamentações diante de nossos erros do passado são sempre improfícuas. Arrependimentos pura e simplesmente desprovidos de ação reparadora são inócuos. Cabe a nós olhar o passado, reconhecer os erros, e aprender com eles. E o mais importante – caminhar sempre, sem temor, na direção da Luz. 

Brasília, 17 de março de 2007

* Articulista espírita, escritor, arquiteto e  professor 

1 Texto adaptado de http://www.vidaslusofonas.pt/santos_dumont.htm – acesso em 6 de março de 2007.

2 Ditado em 1954 pelo espírito Camilo Castelo Branco (1825-1890). Médium: Ivonne A. Pereira. Editora FEB.

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