TEXTOS DO AUTOR

CARTILHA SODRÉ

O texto primoroso de Romildo Sant'Anna nos remete aos tempos do Grupo Escolar. Naquela época, nada a ver com a nova era, de livros sofisticados que fazem a festa de editores e livreiros no início do ano letivo.

Texto de Romildo Sant’Anna*

Era um livro-brochura grampeado na dobra. Na capa fosca e esverdeada, uma menina de tranças sorria pra gente e nos convidava à ventura das primeiras letras. Com poucas páginas, tinha o tamanho parecido ao das cadernetas com que comprávamos fiado no empório, ou dos almanaques que nos entretinham em viagens de trem. A autora, nossa heroína, Benedicta Stahl Sodré, aparecia com letras miúdas na capa. Nossa cartilha alcançou quase 300 edições e multidão de exemplares vendidos, bem baratinhos.  

Recordo a primeira lição.  Era da pata e, evidentemente, tinha uma pata branca pairando num lago.  “A pata nada. Pata-pá, nada-ná”, repetíamos em voz alta mirando a figura e as letras redondas de professora.  Reconhecemos o “p”, o “n” e a primeira vogal, aquela da abelha. Depois vieram o “g” de gato, o “m” dum macaco contente e o “z” de Zazá zanzando na lição de novembro.  

O método de ensino – segundo os entendidos – era o fônico, que associava letras e desenhos aos sons dos vocábulos. Com alegria de aprender, desafiávamos em batalhas gritantes a turma da sala ao lado, bradando em coro: “Vovô viu a uva! Vovô viu a uva!”.  Eles, que aprendiam na Caminho Suave, respondiam ruidosos, tropeçando em consoantes: “O rato roeu a roupa do rei de Roma!”. A Suave não era grampeada nem parecia caderneta. Achávamos bonita, com um casal de crianças na estrada apontando com o dedo o futuro. Mas era tanto assim (talvez porque não a tivéssemos). Pois a turma rival, com a qual competíamos também em caligrafia e aritmética, não escondia disfarçada inveja da nossa cartilha, a velha Sodré.

Naquela época muitas crianças de ponta de vila, como nós, nem iam à escola.  Mas os que a frequentávamos, às vezes de pés no chão, saíamos lendo, escrevendo e entendendo o que líamos. O boletim não era uma folha impressa no computador, mas atestado de conduta intelectual, com bem-vindas notas azuis e assustadores vermelhos escritos à mão. O material escolar cabia no pequeno bornal dos garotos ou em bolsas das meninas. E, sem que percebêssemos, já estávamos na enfeitiçante selva de Ubirajara ou nos encantávamos com o despertar adolescente de Clarissa, fervendo em nós a puberdade, apaixonados por ela.

Hoje, a alfabetização não passa duma estatística do governo e o analfabetismo funcional é um cruel. Os livros, glamorosos e caríssimos, fazem a festa de editores e livreiros no início dos anos letivos. Encenam uma peça ornamental e transformam filhos e pais em submissos reféns. Certas escolas, a par de materiais tão sedutores e às vezes inócuos, usam tais apetrechos como molas a justificar o alto preço das mensalidades, agora em 13 prestações. O arsenal pedagógico é tanto e tão volumoso que necessita de maletas com rodas para o seu transporte. À parte isso, a vida é nota zero em solidariedade, um reality show desenfreado e consumista. Tenho saudade da Sodré silente na algibeira das lembranças, dormindo num picuá brim.

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* Romildo Sant’Anna é jornalista, escritor, pesquisador e professor universitário.

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